1. A Quaresma foi instituída no século IV depois do Concílio de Niceia. Até aí, os cristãos celebravam o domingo como dia da Ressurreição do Senhor, dando especial atenção ao Tríduo Pascal como forma de preparar a Páscoa da Ressurreição, na madrugada de domingo. Os cristãos na era pós Constantino, libertos de perseguições, acharam ser possível preparar a Páscoa ao longo de sete semanas. Assim nasceu a Quaresma. É usual dizer-se que a Quaresma é tempo de conversão e tempo de renovação interior para viver a alegria pascal. Passo a passo, com ritos continuados, as comunidades cristãs vão aperfeiçoando a sua fé, tornando-se capazes de receber “a luz de Cristo que ilumina a terra inteira” (cântico pascal). Para compreender melhor o que é a Quaresma, vale a pena ler a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2017. Em quatro pinceladas magistrais, dá-nos deste tempo uma visão maravilhosa:
. “A Quaresma é um novo começo, uma estrada que leva a um destino seguro, a Páscoa da Ressurreição, a vitória de Cristo sobre a morte”. Esta ideia do começo marca o caminho para a Luz que brilhará na Páscoa.
. “A Quaresma é o momento favorável para intensificar a vida espiritual, através dos meios santos que a Igreja nos propõe: o jejum, a oração, e a esmola”. Intensificar a vida espiritual é uma exigência para sair da rotina em que a vida cristã de cada um anda envolvida.
. “A Quaresma é um tempo propício para abrir a porta do nosso coração ao outro, seja o nosso vizinho, seja o pobre desconhecido, e neste reconhecer o rosto de Jesus Cristo”. Cada necessitado que vem ao nosso encontro é um dom e merece aceitação, respeito e amor.
. “ A Quaresma é um tempo oportuno para nos renovarmos no encontro com Cristo vivo, na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo”. A renovação constante faz parte da vida cristã. A fé é como o amor, ou está a crescer ou está a diminuir, uma e outra coisa depende da forma como a alimentamos.
Nestas quatro fórmulas de extraordinária beleza entende-se o essencial da Quaresma, para que depois, na Páscoa tudo seja diferente. É recomeço, na vida espiritual e no serviço ao mais pobre, para a renovação inteira na relação com Deus e para o exercício da caridade no serviço ao outro.
2. Para chamar os cristãos à renovação quaresmal, Francisco Papa quis integrar uma lindíssima página do Evangelho de Lucas, a parábola do rico avarento e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31). A descrição que o Papa faz das características do rico que tem tudo e não se preocupa em nada com os outros e, depois, o drama de Lázaro que às portas do rico sofre os desprezos mais vis, leva a perguntar de que lado é que está o cristão. Será que procura a sua afirmação pessoal ou resolve as normais dificuldades dos outros? É capaz de ir ao encontro dos Lázaros que sentem o medo e de partilhar com eles os seus bens, ou fica distante, indiferente perante as múltiplas carências dos pobres? Para o caminho quaresmal, Francisco propõe três ideias muito fortes e muito exigentes:
. O outro é um dom. Deus faz passar diante de cada um de nós inúmeros necessitados a quem é urgente socorrer com uma resposta global. O outro, quem quer que ele seja, precisa de mim e éme dado por Deus para que eu me relacione com ele, com atenção, com palavras, com sorrisos, com generosidade no dar, com alegria na presença até com oração no silêncio. Os Lázaros são dom de Deus para a nossa partilha fraterna.
. O pecado cega-nos. De facto, o pecado é sempre uma atitude de egoísmo que traz consigo a afirmação do “eu” e a exclusão de todos os outros. Foi esta a atitude do rico avarento. Ele tinha tudo e, por isso, instalado nos seus interesses, desprezava o pobre Lázaro que morria de fome à sua porta. Onde se reconhece este egoísmo é no amor ao dinheiro, à vaidade e à soberba. Centrado nestas atitudes arrogantes, o rico avarento ficou só por toda a eternidade. Isto não pode acontecer com o cristão. “Ninguém pode servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro” (Mt 6, 24), como diz o Evangelho.
. A Palavra é um dom. Perante a narrativa do rico avarento e do pobre Lázaro, compreende-se a importância que têm as muitas parábolas que Jesus contou. Por cada discurso, cada história, cada conselho que estão nos Evangelhos, entende-se que a Palavra de Deus é o dom maior a que se recorre para saber viver como cristão. As páginas da Escritura são um desafio que faz crescer na fé e na caridade, os dois grandes motes da vida cristã. É neles que se concretiza o projecto de vida.
Seguindo a mensagem do Papa Francisco, facilmente compreendemos o nosso caminho quaresmal: servir o outro com a maior generosidade porque ele é um dom de Deus; libertar-se de todo o egoísmo que cega no presente e que compromete o futuro; e, finalmente, alimentar-se da Palavra de Deus, que é a verdadeira fonte da vida.
3. A Liturgia da Quaresma contém um extraordinário ritmo de conversão. Em cada domingo, o Evangelho marca o tempo de aproximação à Pascoa.
. O deserto alerta-nos para as normais tentações do ter, do poder e do prazer. É preciso vencer a tentação para aderir à Pessoa de Jesus (1º domingo).
. O Monte Tabor revela-nos que Jesus Cristo é “o Filho muito amado de Deus em quem o Pai põe toda a sua ternura”. É escutando Jesus, Palavra Viva, que nos tornamos filhos de Deus também (2º domingo).
. O Poço de Jacob, na Samaria, permite a Jesus dizer que tem “a água viva que jorra para a vida eterna”. A mulher samaritana aceita ser surpreendida, descobre que aquele homem é o Messias, anuncia-O aos habitantes de Sicar e compreende com todos que Jesus é o Salvador do mundo. Descobrir a identidade de Jesus e aderir a Ele exige um caminho de conversão (3º domingo).
. A Piscina de Siloé, onde o cego de nascença, a pedido de Jesus, foi lavar-se, restituiu-lhe a vista transformando radicalmente a sua vida. A clareza da narrativa evangélica traz a garantia de que Jesus pode restituir a vista a todos os olhos cansados. As dúvidas, as dificuldades e até a própria culpa podem cegar-nos. “Lavarmo-nos” na Palavra de Deus, ajudar-nos-á na conversão necessária (4º domingo).
. A Casa de Betânia foi o lugar escolhido por Jesus para dizer que é o Senhor da vida, ao ressuscitar o amigo Lázaro, morto há quatro dias. O fenómeno da ressurreição é o elemento essencial do caminho cristão. Será cada um capaz de ressuscitar para uma vida mais exigente, na fidelidade a Deus e aos irmãos (5º domingo).
No 6º domingo da Quaresma, o Domingo de Ramos, lê-se a Paixão de Cristo. Ele deu a vida, para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10, 10). É esta vida nova que o caminho quaresmal nos propõe. A Quaresma é tempo favorável, é tempo de esperança e tempo de conversão.
4. Viver a Quaresma como se fosse a primeira vez é o grande desafio que nos é proposto. Temos a mensagem do Papa, temos também o itinerário de cada domingo, resta-nos a vontade de querermos ser melhores, nos aspectos fundamentais da nossa vida, na relação com Deus que nos ama e na relação com o próximo que nos espera.
Pe. Vítor Feytor Pinto – Prior