1.  Foi em 1264 que o Papa Urbano IV instituiu a Solenidade do Corpo e Sangue de Cristo.  Em pleno século
XIII, o cónego Tiago de Troyes, arcediago do Cabide Diocesano de Liège na Bélgica, recebeu o segredo
da irmã Juliana de Mont Cornillon, freira agustiniana,  que teve visões em que Cristo lhe pedia que o
Mistério  da  Eucaristia  fosse  celebrado  com  a  maior  solenidade,  enquanto  expressão  da  fé  eucarística.
Acontece que o cónego de Liège foi eleito Papa com o nome de Urbano IV. Durante o seu pontificado
deu-se,  perto de Orvieto,  o milagre de Bolsena, em que um sacerdote ao celebrar a Eucaristia, no momento
de partir a sagrada hóstia, terá visto cair sangue que empapou o corporal. O Papa determinou então que se
realizasse uma grande procissão de homenagem  de adoração  ao Santíssimo Sacramento. Foi a primeira
procissão do  Corpus Christi. O Papa  publicou,  então, a Bula  Transiturus,  em que pedia  que fosse celebrada
na Igreja inteira  esta festa,  na quinta-feira  depois da oitava de Pentecostes. Foi S. Tomás de Aquino que
compôs o Ofício com hinos que ainda hoje permanecem na liturgia do Corpo de Deus: o Lauda Sion, Ave
Verum  Corpus  Natum,  Panis  Angelicus.  A  devoção  ao  SS.  Sacramento,  nesta  grande  procissão
Eucarística, espalhou-se pelo mundo inteiro. Em Portugal todas as cidades e vilas tiveram esta grande
procissão,  através dos séculos. Nem no tempo de eventuais perseguições o povo deixou de fazer esta
grande  homenagem  a  Jesus  sacramentado,  a  procissão  do  Corpo  de  Deus.  Mesmo  nas  vilas  mais
escondidas a procissão do Corpo de Deus tem três significados muito profundos:

.Pretende-se afirmar a fé  na presença real de Jesus no SS. Sacramento. Aliás, muitos castelos e
casas nobres de Portugal têm símbolos eucarísticos nos seus brasões.

.Deseja-se  também  a  participação  de  toda  a  comunidade  humana  nesta  homenagem  ao  SS.
Sacramento. A devoção eucarística envolve toda a gente, crentes e até não crentes. A passagem do
SS. Sacramento pelas ruas da cidade é uma bênção para todo o povo.

.Consegue-se  a  presença  do  poder  autárquico  nesta  grande  celebração.  Em  Portugal,  durante
séculos, a procissão do Corpo de  Deus era organizada pelas Câmaras Municipais, com todas as
forças vivas da cidade.

Pode  actualmente  a  Festa  do  Corpo  de  Deus  ser  celebrada  pela  comunidade  cristã  e  não  tanto  pela
população. Continua, porém, esta festa a ser uma afirmação de fé que leva a bênção eucarística a todas as
famílias, a todos quantos esperam na sua vida a protecção de Deus. A procissão do SS. Sacramento é neste
dia o hino de acção de graças por tudo quanto de bom vai acontecendo ao longo do ano. É também um
tempo de súplica para que a bênção de Deus a todos proteja, superando dificuldades, aliviando sofrimentos,
garantindo na comunidade humana a alegria e a paz.

2.  Há um autor brasileiro, Gustavo Corsão, que no seu livro Fronteiras da Técnica, consagra um capítulo
à Eucaristia. Ele  diz que a Eucaristia é como uma grande peça de teatro que tem  um ensaio geral,  uma
sangrenta  première  e sucessivas  reprises  até ao fim dos tempos. O ensaio geral, diz ele, aconteceu na
Quinta-feira Santa, em que Jesus repartiu o pão e o vinho dando-os aos seus discípulos e dizendo: “Isto é
o meu Corpo, isto é o meu Sangue, fazei isto em memória de Mim”. A sangrenta prémiere aconteceu no
Calvário, quando Jesus crucificado ofereceu  o seu Corpo e o seu Sangue pela redenção da Humanidade.
A Paixão, a Morte e a Ressurreição de Jesus são a grande oferenda ao Pai para que o perdão chegue a
todos  os  homens,  permitindo-lhes  a  alegria  da  verdadeira  ressurreição.  As  sucessivas  reprises  são  a
Eucaristia que se celebra em todos os altares do mundo repetindo na oração as mesmas palavras que Jesus
proferiu na Última Ceia. O sacerdote  no altar toma o pão e o cálice e neles torna presente a Pessoa de Jesus
que é comungado por todos os fiéis. Se a  linguagem poética de Gustavo Corsão tem uma rara  beleza, o
Concílio Ecuménico  Vaticano II leva os cristãos a entenderem que a presença de Jesus na Eucaristia deverá
ter repercussão  na sua vida toda. De facto, é assim, que no número 47 do  Sacrossantum Concilium  se
define a Eucaristia, voltada para o quotidiano.

.Eucaristia  é  “o  sinal  da  unidade”.  O  cristão  em  qualquer  situação  em  que  se  encontre  é  um
apóstolo da reconciliação, da unidade e da paz. O cristão tem que estar bem com todos, e a todos
abrir o seu coração.

.Eucaristia é “o vínculo do amor”. Na relação do cristão com toda a gente o grande paradigma é
o amor.  Acontece, porém, que o amor nunca é suficiente, pode amar-se sempre mais. Por isso
mesmo quem participa na Eucaristia deverá ser um missionário do amor, amando e ensinando a
amar, a todos e sobretudo aos mais pobres.

.Eucaristia é “o sacramento da piedade”. Não será possível amar sem fronteiras se não se estiver
alicerçado no amor de Deus.  Então, a oração realizada no  dia-a-dia tem sempre como  referência
um grande hino de acção de graças a Deus e a seu Filho Jesus Cristo feito homem.

.Eucaristia é “o banquete da alegria pascal”.  Nesta afirmação estão três palavras-chave para a
vida do cristão. O banquete é expressão de intimidade com Deus e com os irmãos, a alegria é o
objectivo de quem procura na vida celebrar a Bem-Aventurança, a páscoa é a vitória sobre todas
as dificuldades, sobre todas as mortes. A Eucaristia realiza tudo isto.

.Eucaristia é “o memorial da Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo”. Participar na Páscoa de
Cristo não acontece apenas no altar. O cristão leva para a vida quotidiana Cristo crucificado e
Ressuscitado. Em comunhão com Ele celebra-se no  dia-a-dia  a exigência da fidelidade, às vezes
difícil, e a capacidade de chegar mais longe na vida cristã em todas as situações.

O Papa Francisco veio acrescentar a esta visão do Concílio uma expressão muito bonita, quando diz que
a Eucaristia é um alimento e um remédio sobretudo  para os mais fracos (EG  47). De facto,  a Eucaristia
alimenta a vida e sara as feridas, permitindo ao cristão viver com maior alegria a beleza do Evangelho.

3.  Há alguns anos realizou-se em Fátima um grande simpósio do clero. O tema de uma das tardes foi este:
“Eucaristizar  a  vida”.  O  debate  foi  de  uma  riqueza  extraordinária.  Com  peritos  vindos  de  todos  os
quadrantes, falou-se de levar a Eucaristia para o quotidiano, o que exige Eucaristizar a família, o trabalho,
a educação, a saúde, o passatempo, a vida social. Foi uma reflexão de grande beleza e de uma profunda
exigência. Se a Eucaristia é um mistério de amor é preciso levar este hino de acção de graças para a vida
quotidiana:

.Eucaristizar a família  implica colocar na família os grandes valores eucarísticos: a unidade, o
amor, a alegria pascal, o mistério de Cristo Ressuscitado. Tudo isto não é possível sem a harmonia
e a entreajuda que fazem todas as famílias felizes.

.Eucaristizar o trabalho reclama necessariamente a competência, a solidariedade e a alegria, a par
do salário justo e da participação na vida das empresas. O trabalho realiza a pessoa, mas a pessoa
pelo trabalho valoriza e enriquece a sociedade. O trabalho é eucarístico, pede constante acção de
graças.

.Eucaristizar  a  educação  e  a  saúde  supõe  o  cuidado  na  formação  integral  das  pessoas  e  a
prevenção  através de uma vida com qualidade que evita doenças desnecessárias. As pessoas com
cultura suficiente e com a qualidade de vida  indispensável têm mais possibilidade de agradecer a
Deus os bens que d’Ele recebem e de servir os irmãos com generosidade acrescida.

.Eucaristizar o tempo livre  convida a gastar algum desse tempo no diálogo de intimidade com
Deus e também no serviço aos mais pobres e aos que mais sofrem. Grande parte do tempo livre
tem que ser tempo para os outros. E, assim, o cristão semeia à sua volta o amor que é uma respiração
de Deus.

Pode ser uma surpresa pretender levar a Eucaristia para toda a parte. Mas não é isso que se diz no final da
Missa?  De  facto,  o  sacerdote,  no  Rito  da  Despedida,  diz  claramente:  “Iluminados  pela  Palavra,  e
fortalecidos com a Eucaristia, ide em paz  e levai essa paz a toda a gente”. Esta proposta do sacerdote torna
a Eucaristia presente no quotidiano de cada um.

4.  Que na nossa comunidade a Eucaristia diária ou dominical seja uma referência fundamental para todos
na sua piedade, mas seja também um desafio a levar Cristo Ressuscitado aos lugares onde se vive e a todas
as pessoas que se encontram no caminho.

P. Vítor Feytor Pinto