1. Depois do Sínodo Diocesano que recordou os 300 anos do Patriarcado de Lisboa, o nosso Patriarca propôs três anos de renovação profunda da acção pastoral. No primeiro ano, dar-se-á uma especial atenção ao ministério profético; no segundo, a renovação será no âmbito sacerdotal e litúrgico; no terceiro, procurar-se-á um dinamismo novo para a acção socio-caritativa. De uma maneira abrangente, o triénio (2017-2020) levará todos os cristãos “a fazer da Igreja uma rede de relações fraternas”. Para conseguir tudo isto, é lógico começar pelo ministério profético, sabendo que “a Palavra de Deus é o lugar onde nasce a fé”. Aliás, este é o tema do nº 38 da Constituição Sinodal que orienta toda a acção pastoral no Patriarcado de Lisboa. É de notar, desde já, que falar da Palavra de Deus é falar do Verbo de Deus, é ter como referência a Pessoa de Jesus Cristo. Há três textos do Novo Testamento que permitem compreender que falar da Palavra de Deus é falar de Jesus Cristo. Vale a pena citá-los:
-“Antes do mundo ser mundo, Aquele que é a Palavra já existia. Tudo foi feito por Ele e para Ele, que encarnou e se fez homem, para habitar entre nós e vir trazer a salvação” (Jo 1, 1-5).
-“Deus amou tanto o mundo que lhe deu o seu Filho Unigénito, não para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo” (Jo 3, 16-20).
-“O Filho de Deus feito homem é Jesus Cristo, em tudo igual a nós, excepto no pecado” (Hb 4, 15).
-“Tendo outrora Deus falado aos nossos pais pelos profetas, nestes dias que são os novos fala-nos por intermédio de seu Filho Jesus Cristo, a Palavra Viva” (Hb 1, 1-2).
Estes textos facilmente nos levam a compreender que Jesus é a Palavra de Deus, o Verbo com que o Pai comunica o seu amor a toda a Humanidade. Quando se diz que “a Palavra é o lugar onde nasce a Fé”, talvez possa ser indicativo para outra formulação: a Palavra é a Pessoa viva de Jesus, fundamento da Fé e fonte sempre maior de santidade. De facto, a fé consiste na comunhão plena e perfeita com Cristo e, por Ele, na capacidade de amar toda a gente e de construir a comunidade que é a Igreja.
2. O programa da acção pastoral, no Patriarcado de Lisboa, em 2017-2018, obriga a repensar a Palavra de Deus na vida de cada cristão e na vida das comunidades cristãs. Tantas vezes as pessoas perdem-se em “devoçõezinhas” vindas de tradições, inspiradas em orações aos santos preferidos, cheias de rotinas que contrariam toda a renovação espiritual. Por isso, com a maior exigência, todos os cristãos e as comunidades devem ter três atitudes, perante a Palavra de Deus, na sua vida espiritual e pastoral. O que deve ser feito?
– A centralidade da Palavra, isto é, a Palavra no coração da vida espiritual e pastoral. Para isso deverá colocar-se a Palavra de Deus na vida de oração; criar grupos bíblicos que promovam a partilha da Palavra de Deus, perante os textos, sobretudo do Novo Testamento; converter os Salmos em oração reveladora da ternura de Deus para com os seres humanos.
-O conhecimento da Palavra, isto é, o aprofundamento constante da Sagrada Escritura. Este conhecimento só se consegue com o estudo indispensável que leve ao contacto fácil com a Palavra de Deus. Ao cristão não basta comentar os textos da liturgia e acompanhar a homilia. Pede-se mais: manusear com facilidade os textos bíblicos, para que se possam tornar oração transformadora da vida; garantir a formação bíblica dos catequistas, dos formadores de jovens, dos leitores e de todos os agentes pastorais; ter na Palavra de Deus a referência constante para a oração de todos os dias; aproveitar mesmo a Letio Divina como grande meio para o crescimento na fé.
– A transmissão da Palavra, isto é, uma constante atitude de evangelização. Todos os cristãos têm de ser profetas dando testemunho de Cristo em toda a parte e àqueles que lho pedirem dando razão da esperança da vida eterna que há neles. Compete-lhes garantir um lugar de relevo à Palavra de Deus, em todos os sacramentos; tornar a Palavra de Deus compreensiva, mesmo nas páginas mais difíceis; fazer da pregação o anúncio expresso de Jesus Cristo, a Palavra Viva de Deus.
Constitui uma responsabilidade, para todas as comunidades cristãs, o garantir a centralidade da Palavra, o seu conhecimento e a sua transmissão. De facto, se a missão evangelizadora da Igreja consiste em anunciar Jesus Cristo Ressuscitado – a Palavra de Deus, Pessoa de Jesus Cristo Vivo –, é essencial ter a Palavra de Deus como a marca fundamental de todo o anúncio da Boa Nova.
3. A vida do cristão tem de estar inspirada constantemente na Palavra de Deus. Durante séculos, os cristãos católicos davam mais atenção aos sacramentos do que à oração alicerçada na Palavra de Deus. Tempos houve em que ler a Palavra de Deus e proclamá-la tinha um certo sabor de outras Igrejas cristãs. Felizmente, os movimentos bíblicos do princípio do século XX trouxeram a Palavra de Deus para o primeiro lugar na vida cristã. Compreendeu-se até que os sacramentos da Igreja se fundamentam em textos bíblicos reveladores da vontade de Jesus para com todos aqueles que O seguem. Passando a Palavra de Deus a ser tão importante, poderá perguntar-se qual a relação dos cristãos com a Palavra de Deus, quer na sua vida espiritual, quer na maneira de serem cristãos na ordem temporal. Com estes três verbos facilmente se define a vida cristã centrada na Palavra de Deus: orar com a Palavra; viver segundo a Palavra; e anunciar a Palavra.
-ORAR com a Palavra. Foi o Concílio Vaticano II que o recomendou ao dizer “A Deus falamos quando rezamos e a Deus escutamos quando lemos a sua Palavra” (DV 25). De facto, é assim. Para ouvir o que Deus tem a dizer-nos, basta abrir a Palavra de Deus. Ali está tudo o que Jesus Cristo, Palavra Viva, quer de nós. Os cristãos perdem-se muitas vezes com devoções piedosas que não dizem o que Deus quer deles. Só a Palavra, lida e rezada, a Palavra orante, diz o que Deus espera daqueles que n’Ele acreditam e querem seguir os seus caminhos.
– VIVER segundo a Palavra. “Quem ouve as minhas palavras e as põe em prática é verdadeiramente a minha mãe e os meus irmãos” (Lc 8, 21). A prática cristã a partir da Palavra de Deus – na família, no trabalho, na vida social, na intervenção política, na administração económica – é a única forma de se ser cristão. Só a Palavra de Deus é verdadeira vida para os cristãos. É Jesus que o diz: “aqueles que me amam e cumprem a minha Palavra, meu Pai os amará e nós viremos a eles e faremos neles nossa morada” (Jo 14, 23).
-ANUNCIAR a Palavra. O núcleo central da evangelização é o anúncio de Jesus Cristo Redentor e Salvador. A palavra de Deus, sobretudo no Novo Testamento, revela atitudes de Jesus que são verdadeiramente salvíficas. Evangeliza-se quando se dá testemunho de Cristo, quando se anuncia que Ele é o Filho de Deus, quando se revela que toda a vida do cristão está repassada da Pessoa de Jesus. Para anunciar a Boa Nova da salvação, o cristão tem de se deixar apanhar por Cristo, revelado na Palavra. Depois, qualquer cristão torna-se evangelizador: o pai e a mãe na relação com os filhos; o professor no contacto com os alunos; o profissional com a competência e o rigor com que exerce as suas funções. Além disso, anunciar Jesus com oportunidade é um segredo que nasce do conhecimento profundo da Palavra de Deus.
Se há responsabilidades na comunidade cristã para ter a Palavra de Deus no centro das iniciativas pastorais, também o cristão nunca poderá ser verdadeiramente fiel à Pessoa de Jesus se não orar com a Palavra, se não viver segundo a Palavra, se não anunciar a Palavra quando as circunstâncias da vida lho pedem e lho permitem.
4. Associando-se a nossa comunidade paroquial ao programa pastoral que o Senhor Patriarca propõe, devemos lutar para fazer da Igreja que somos uma rede de relações fraternas. Isto, porém, só se conseguirá com a centralidade na Palavra de Deus.
Pe. Vítor Feytor Pinto-Prior