- Uma das mais importantes dimensões da vida cristã está certamente no profetismo, isto é, na referência constante à Palavra de Deus. Há uma diferença profunda entre a palavra humana, fonte de toda a nossa comunicação, e a Palavra de Deus, que é o Filho de Deus, através da qual o Senhor fala com os homens. Quem lê a Sagrada Escritura a que habitualmente se chama a Palavra de Deus, está a receber a mensagem que o Senhor nos deixa como orientação para todos os nossos caminhos. Nas histórias do Antigo Testamento é frequente referir-se o “Oráculo do Senhor”, sinal de que quem fala, através dos profetas, é o próprio Deus. O profeta Isaías chega a dizer que “o Espírito do Senhor está sobre mim e ungiu-me para dar a Boa Nova aos pobres” (Is 61, 1 e Lc 4, 18). O Novo Testamento vai muito mais longe quando identifica Jesus como o Verbo de Deus, a Palavra de Deus, o Filho de Deus feito homem. Jesus é, então, a Palavra através da qual Deus conversa connosco. Há muitas páginas do Novo Testamento em que isto facilmente se pode constatar. São, porém, três os momentos que não podem deixar de referir-se:
.“No princípio era o Verbo … tudo foi feito por Ele e para Ele” (Jo 1, 1-3). Numa feliz tradução da Bíblia Ecuménica Portuguesa – Boa Nova para Todos – diz-se: “antes do mundo ser mundo, Aquele que é a Palavra já existia”.
.“Tendo outrora Deus falado a nossos pais, pelos profetas, nestes dias que são os novos, fala-nos por intermédio de Jesus Cristo, seu Filho, Palavra Viva” (Heb 1, 1-2). De facto, Jesus Cristo é a Palavra Viva de Deus, é através d’Ele que Deus fala connosco, nos transmite o seu desejo salvador.
.“Felizes os que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11, 28). Ouvir a Palavra de Deus é escutar o próprio Jesus Cristo, Filho de Deus. Ao longo do Evangelho Ele revela-se de inúmeras maneiras, mas é Palavra Viva para ser vivida. Talvez por isso tenha dito de sua mãe: “A minha mãe e os meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8, 21).
Ao percorrer o Evangelho facilmente se compreende que é seguindo a Palavra de Deus que, em Cristo, somos salvos. Por isso se diz: “Que a Palavra de Deus habite em vós abundantemente” (Col 3, 16), “A Palavra de Deus é eficaz” (Hb 4, 12) e ainda “A sua mensagem é Palavra de vida” (Fil 2, 16).
2. A Palavra de Deus está no centro da vida da Igreja. Desde a chamada dos discípulos até ao seu envio a anunciar a Boa Nova e baptizar aqueles que acreditam, tudo na comunidade apostólica está centrado na Palavra que é Jesus, o Filho de Deus. Foi Jesus que escolheu os doze, foi Jesus que deu a Simão o nome de Pedro, para ser a pedra na qual se edifica a Igreja, foi Jesus que prometeu o Espírito e, no cenáculo, depois, pediu para “todos serem um como Ele e o Pai são um só” (Jo 17, 21). A partir da descida do Espírito Santo, no Dia de Pentecostes, a Igreja passou a viver da Palavra de Deus.
Os Apóstolos viviam em nome de Jesus, Palavra de Vida. Pedro e João dizem ao paralítico do Templo: “Não temos ouro nem prata, mas damos-te o que temos: em nome de Jesus Ressuscitado, levanta-te e anda” (Act 3, 1).
Pedro, João, Paulo e os outros proclamavam a Palavra de Deus. Nos seus discursos e nas suas cartas vão deixando a Boa Nova do Reino, anunciando a Pessoa de Cristo Ressuscitado, o Verbo de Deus feito homem para a redenção da humanidade.
Depois, através dos séculos, a Palavra de Deus é anunciada aos pobres, nas mais diversas situações. Na liturgia, na catequese, no exercício da caridade, a Palavra de Deus tem sempre o primeiro lugar. Escutar a Palavra para viver a Palavra é uma constante em toda a Pastoral da Igreja.
Na Eucaristia Dominical, como na administração dos Sacramentos, a Palavra de Deus tem sempre o primeiro lugar e é a partir dela que se transmite e se valoriza a fé que o próprio Sacramento enriquece.
Em toda a vida da Igreja é sempre a Palavra de Deus a falar, a transmitir a graça, a estimular a resposta aos desígnios de Deus. Sem a Palavra era impossível viver a fé, crescer na fé, perseverar na fé e reunir a comunidade na fé.
3. O cristão vive da Palavra de Deus, vive do Verbo, centra-se na Pessoa de Jesus Cristo, Filho de Deus. É certo que a Palavra de Deus, o que Deus quer comunicar ao cristão, está compreendido na Sagrada Escritura, no Antigo e Novo Testamento. Infelizmente, a Palavra de Deus durante séculos foi esquecida. A vida cristã centrava-se nos Sacramentos a celebrar, nos mandamentos a cumprir e na oração repetida rotinadamente. O século XX trouxe-nos o movimento bíblico e as pessoas começaram a descobrir a riqueza da Palavra de Deus. A partir daí passaram a centrar-se na Palavra, quer na iniciação cristã, quer na celebração da fé, quer na relação pessoal com Deus.
. A iniciação à vida cristã constitui, no dizer de S. João Paulo II, o que tradicionalmente se chamava a catequese (CT 21). Através da Palavra de Deus conhece-se a Pessoa de Jesus, aceita-se a sua Boa Nova, compreendem-se as exigências que Ele pede e vive-se o “ser cristão”. A catequese não é doutrina, é iniciação à vida cristã.
. A celebração da fé é vivida intensamente na liturgia que realiza o exercício sacerdotal de Cristo (SC 7). Em cada celebração, na própria expressão de cada Sacramento, repetem-se as palavras de Jesus: “Eu te Baptizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo (cf Mt 8, 19) no Baptismo; “Isto é o Meu Corpo…, isto é o Meu Sangue” (Mt 26, 26), na Eucaristia; “a quem perdoardes os pecados, ser-lhe-ão perdoados” (Jo 20, 23), na Reconciliação e, assim, em todos os outros Sacramentos.
. A oração, relação pessoal com Deus, pede o recurso constante à Palavra de Deus: “A Deus falamos quando rezamos, a Deus escutamos quando lemos a Sua Palavra” (DV 25). De facto, pela Palavra de Deus, o seu Verbo, Deus fala com o homem, responde às suas preocupações, dissipa as suas dúvidas e pede-lhe com exigências, a fidelidade no enquadramento da sua vida. Se a oração é encontro com Deus e diálogo com Ele, este encontro dá-se no contacto frequente com a Palavra de Deus e na aceitação de tudo quanto Ele nos quer dizer, na Palavra Viva que Ele é.
De facto, na vida cristã, não pode prescindir-se da Palavra de Deus. Antigamente havia os devocionários, os missais com a tradução do latim, os livros marianos e os livros dos santos com propostas a imitar. Hoje, a oração do crente centra-se na Palavra de Deus que, vivida, pode transformar todo o nosso quotidiano.
4. Assim, para entender a Palavra de Deus é preciso conhecê-la, estudá-la, rezá-la. O caminho não é difícil, uma vez que os textos, sobretudo do Novo Testamento, têm uma riqueza espiritual fortíssima e uma beleza literária invulgar. Que a Palavra de Deus seja a nossa oração.
Pe. Vítor Feytor Pinto – Prior