1. A sociedade actual está dominada pelo ruído. De facto, em qualquer lugar onde as pessoas se encontram ouvem-se constantemente vozes altas que perturbam a normal relação entre as pessoas. Os aparelhos de som ecoam por todo o lado e comprometem a pacatez dos cidadãos, sobretudo dos mais velhos. É curioso que o gesto primeiro que as pessoas fazem ao entrarem em casa é ligar os aparelhos de rádio ou televisão. Se se pergunta porquê, diz-se que é para ter companhia. Uma coisa é certa: parece que ninguém é capaz de estar sozinho aguardando a chegada dos outros familiares para um convívio que realiza a vida da família. Quem percorre as ruas mais estreitas da cidade facilmente cruza com o ruído que faz parte do tecido urbano. Uma porta é um bar com as últimas músicas pop, outra porta é um Centro Comercial com reclames dos últimos produtos para vender, outra porta ainda tem uma tertúlia onde se debatem questões políticas, na porta seguinte homens de clubes diferentes gritam as maravilhas dos seus craques. O barulho no seu conjunto é ensurdecedor. Não há silêncios no viver comum dos cidadãos.
. O movimento das ruas com os motores dos automóveis e dos autocarros põem em sobressalto constante os peões.
. A agitação dos lugares públicos, repartições, centros de atendimento, restaurantes, cinemas, é uma constante em que as pessoas se empurram querendo manter sempre o primeiro lugar.
. O aglomerado de pessoas nas escolas com jovens em correrias constantes, nos hospitais com doentes a lamentarem-se da situação que estão a viver, nos tribunais com o reclamar da justiça que chega sempre tarde, torna difícil a solução breve de qualquer problema.
. A intranquilidade dos sem-abrigo, dos migrantes, dos mais pobres, sempre à procura de uma situação melhor, torna-se na grande cidade um estranho ruído que é interpelativo para todos.
Numa sociedade assim é quase impossível fazer silêncio. E sem o silêncio indispensável não há reflexão, nem discernimento, nem decisão que permita um mundo novo marcado pela justiça, pela solidariedade, pelo trabalho e pela paz.
2. Na vida das pessoas, esta agitação constante tornou-se uma forma de viver. Antigamente havia espaços que geravam ambientes de serenidade. É fácil recordar a refeição da família presidida pelo pai ou pelo avô, pela figura mais velha da casa. É fácil também lembrar os serões de família em que se lembravam poetas, se contavam experiências, se afirmava sem pressa o mundo de relações afectivas que trazia dignidade à vida. Também se recordam os passeios nos jardins com conversas gratificantes para todos. O espaço para o silêncio abria porta a uma qualidade de vida que os exercícios de jogging, as correrias de bicicleta ou os jogos de futebol no lugar público perturbam completamente. As pessoas precisam de silêncio.
. É no silêncio que se faz a avaliação do quotidiano. Sem esta reflexão não se adquire a consciência do que é bem e do que está errado.
. É no silêncio que se constroem projectos que dão sentido à própria vida. O ser humano é criativo e precisa de descobrir constantemente caminhos novos que o ajudem a realizar-se plenamente e a sentir-se feliz.
. É no silêncio que se valorizam as relações humanas. De facto só se vê bem com o coração e o coração precisa da serenidade para ir ao encontro do outro, se reconciliar com ele, o ajudar no concreto da vida ou fazer dele companheiro de caminho.
. É no silêncio que o ser humano se torna capaz de dialogar com Deus. A verdadeira oração, experiência vital de Deus, não é feita de fórmulas escritas por outros; por isso é no espaço de harmonia que o silêncio permite que se realiza a adoração, a súplica, a acção de graças.
Como é possível que a sociedade actual não se dê conta da importância do silêncio? Há inúmeros escritores e realizadores que têm trabalhado o tema do silêncio. São sinal disso a ópera “Diálogos das Carmelitas”, o livro “Elogio do Silêncio” e o filme “O Grande Silêncio”. Nestas obras fala-se de pessoas que através do silêncio descobriram a sua realização e puderam dar um sentido novo ao seu encontro com Deus e à sua relação com os outros.
3. O cristão vai encontrar na Palavra de Deus um desafio enorme para os seus tempos de silêncio. O silêncio não é necessariamente uma forma de oração; é, porém, uma fonte de pacificação interior. É preciso na vida saber calar as vozes que constituem uma perturbação constante. Muitas dessas vozes não são exteriores, barulham dentro do coração humano. Podem ser vozes de revolta, ou vozes de insatisfação, ou vozes de arrogância pessoal, ou vozes de intransigência para com os outros. O silêncio permite vencer todas essas vozes e compreender que só se merece ser amado quando se é capaz de amar sem condições. Ao percorrer alguns textos da Escritura compreende-se isto plenamente:
. Moisés vivia a tormenta do Povo de Israel, sempre insatisfeito. Por isso Deus pediu-lhe para construir a Tenda do Encontro onde ele falava com Deus a sós, como um amigo fala a seu amigo. (cf. Ex 33, 7-11).
. Jesus trazia multidões atrás de si, compadecia-se delas, dava-lhes pão, mas precisava do silêncio e por isso, ao entardecer, subia para o Monte para ali se encontrar com o Pai (cf. Jo 6, 15).
. No momento mais importante da sua vida, na proximidade da condenação à morte, Jesus leva os discípulos, Pedro, Tiago e João para estarem com ele em silêncio no Horto das Oliveiras. A partilha do silêncio para os discípulos era difícil: adormeceram. Mas para Jesus era essencial para ir até ao fim (cf. Mt 26, 36-46).
. Os Apóstolos esperaram em silêncio a chegada do Espírito Santo. Sem a força do Espírito jamais seriam anunciadores do Evangelho (cf. Act 2, 1-12).
. Pedro, em nome de Jesus Ressuscitado, curou o paralítico à porta do templo de Jerusalém, mas entrou logo depois no silêncio do templo, para ali louvar a Deus (cf. Act.3, 1-11).
O silêncio faz parte da vida do cristão nas horas de alegria ou nas de sofrimento, nos momentos de sucesso ou nos de crise, em plena afirmação de fé ou no meio das dúvidas: só no silêncio é possível fazer a síntese que levará a uma vida cristã assumida plenamente.
4. O silêncio é muito importante para a oração enquanto encontro com Deus e de partilha espiritual com Ele. Há porém muitas outras formas de silêncio que é preciso cultivar para o equilíbrio da própria vida. É bom que cada um crie um certo espaço que não partilha com ninguém e em que repensa a própria vida. Depois, vale a pena viver tempos fortes de silêncio para actividades que realizem a pessoa. Podem citarse várias situações de vida em que o silêncio é essencial:
. Na leitura de um livro, sobretudo se é importante para aprofundar a própria espiritualidade;
. No acompanhamento de um idoso, de um doente ou de uma criança, quando o silêncio é expressão de ternura, de respeito, de atenção concreta ao momento que o outro vive;
. Na preparação de uma atitude nova que pode mudar completamente a vida, como seja reconciliar-se com alguém, aceitar uma nova tarefa, disponibilizar-se a repartir alguns bens, ou simplesmente estar atento a uma pessoa que pediu auxílio;
. Na preparação de um tempo forte de oração, para definir os contornos do diálogo amigo que com Deus se quer ter.
Cultivar o silêncio é um imperativo na nossa comunidade paroquial. A nível pessoal ou em grupo, a nossa comunidade sem barulho, com uma relação serena, criar-nos-á certamente o bem-estar essencial à nossa realização como comunidade cristã ao serviço de muitos outros.
Pe. Vítor Feytor Pinto - Prior