Exortação Apostólica do Papa Francisco sobre o chamamento à santidade no mundo actual
A ‘alegria” tem sido o tema-programa de todo o magistério do Papa Francisco. Desta vez, convida-nos, com uma simplicidade extraordinária, à alegria na santidade. Mais do que apresentar definições, o Papa assume que “o objectivo é humilde: fazer ressoar mais uma vez o chamamento à santidade, procurando encarná-la no contexto actual, com os seus riscos, desafios e oportunidades, porque o Senhor escolheu cada um de nós ‘para ser santo e irrepreensível na sua presença, no amor’ (cf. Ef 1,4)” (n.2).
O Santo Padre desenvolve o seu pensamento em cinco capítulos e convida-nos a tomar consciência de que Deus nos chama a ser santos, alertando-nos para os caminhos ilusórios que não nos levam à santidade. Logo depois, mostra-nos o único caminho que é Jesus e a sua proposta das Bem-Aventuranças. No quarto capítulo, com um realismo e actualidade surpreendentes, o Papa mostra-nos como corresponder com atitudes evangélicas aos desafios que o nosso tempo põe à vida da fé e, po fim, apresenta a santidade como luta permanente, em que, vamos dando a Jesus o lugar central na nossa vida, no nosso coração.
O chamamento à santidade
O Papa afirma que “a santidade é o rosto mais belo da Igreja” (n. 9), rosto formado pelos que vivem uma vida santa, quer estejam no céu, quer sejam os santos ao pé da porta, como Francisco chama aos santos que caminham entre nós, na normalidade da vida: “gosto de ver a santidade no povo paciente de Deus: nos pais que criam os seus filhos com tanto amor, nos homens e mulheres que trabalham a fim de trazer o pão para casa, nos doentes, nas consagradas idosas que continuam a sorrir” (n. 7). É muito bela esta forma de o Papa nos dizer que há santidade a acontecer nos processos da nossa vida, na simplicidade quotidiana, quando fazemos por viver bem a vocação que o Senhor dá a cada um de nós.
Dois inimigos subtis da santidade
O segundo capítulo do texto alerta-nos para o perigo de duas falsificações da santidade que, sendo antigas, continuam actuais e sedutoras: o gnosticismo e o pelagianismo. São perigosas porque põem o homem no centro do processo de santificação, como se fosse ele o autor e a medida da santidade, dispensando a acção da graça. O gnosticismo é apresentado como vaidosa superficialidade, «uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios que supostamente confortam e iluminam”, deixando a pessoa prisioneira da sua própria razão ou dos seus sentimentos (n. 36). O pelagianismo actual é caraterizado pela confiança demasiada no agir pessoal, no engano “da justificação pelas próprias forças, da adoração da vontade humana e da própria capacidade, que se traduz numa autocomplacência egocêntrica e elitista, desprovida de verdadeiro amor” (n. 57). O Papa elenca exemplos que podem manifestar esta tendência: obsessão pela lei, exibicionismo, ostentação litúrgica, soberba doutrinal, triunfalismo, além de outras doenças espirituais que põem o homem no centro, desfocando o papel de Cristo e da Igreja.
À luz do Mestre
Quando se trata de falar do que é a santidade e do caminho para chegar a ela, o Papa Francisco recorre a Jesus, no melhor tratado de santidade que Ele mesmo nos deixou: as Bem-Aventuranças, apresentadas como o ‘bilhete de identidade do cristão’ (n. 63). Elas são o que deve transparecer no dia-a-dia da nossa vida. O bem-aventurado – o feliz – é, assim, o santo, que alcança a felicidade na fidelidade a Jesus e à Palavra, que põe em prática. É importante ter o cuidado de não as ler como coisas poéticas ditas por Jesus, mas como um caminho em contra-corrente, num mundo que nos conduz para um estilo de vida completamente diferente, na certeza de que a santidade não é feita de palavras, mas de Palavra escutada, obedecida, vivida.
Algumas características da santidade
O quarto capítulo começa com aqueles que são os traços característicos da cultura actual, em que se manifestam “a ansiedade nervosa e violenta que nos dispersa e enfraquece; o negativismo e a tristeza; a apatia cómoda, consumista e egoísta; o individualismo e tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus” (n. 111).
Como resposta a estas realidades, Francisco propõe atitudes de santidade como a suportação, capacidade de permanecer firme em Deus que nos sustenta; a paciência, no sentido de esperar em Deus, na sua justiça, pagando sempre o mal com o bem; a mansidão, resistindo às nossas inclinações agressivas e egocêntricas; a alegria e o sentido de humor, a que Francisco sempre nos desafia porque a alegria é consequência da caridade; a ousadia, que é a coragem evangelizadora que deixa marcas no mundo; o ardor, que é o impulso do Espírito que nos arranca do comodismo; a comunhão, na certeza de que a fé se desenvolve no seio de uma comunidade que caminha para a santidade; e a oração, que é a ligação permanente a Deus, fonte da santidade. Se pusermos estas atitudes em paralelo com os traços contrários da cultura actual, veremos facilmente a riqueza e oportunidade da proposta do nosso querido Papa.
Luta, vigilância e discernimento
No meu primeiro ano de Seminário, num Curso de Relações Humanas e Crescimento Pessoal, ouvi dizer à Irmã Maria Vaz Pinto, que a ingenuidade não é virtude. E nunca mais me esqueci. Quando li o último capítulo da Exortação, foi essa a expressão que me veio à mente. O Papa alerta, com realismo, que a santidade é feita de luta constante, não só contra as más inclinações da própria natureza, nem apenas contra uma mentalidade mundana, mas contra o ‘pai da mentira’ que quer roubar o tesouro do nosso coração. Resistir-lhe e perceber a forma como nos seduz só será possível se vivermos em atitude de permanente vigilância e discernimento, aprendendo, sem ingenuidade, a distinguir entre o mal e o bem, no concreto da nossa vida, buscando sempre aquilo que mais nos conduz a Deus.
A santidade é para nós
Posta assim, na simplicidade e força profética a que nos acostumou o bom Papa Francisco, a santidade aparece-nos como um desafio pessoal, atraente, possível e gerador de felicidade para aqueles que se comprometam com esse caminho. Não será sempre fácil, por isso nos fala de luta e vigilância. Termino com o que o Papa diz no número três, dos testemunhos de santidade que recebemos das pessoas com quem crescemos, palavras que podem vir em nosso auxílio quando estamos mais fracos: “A sua vida talvez não tenha sido sempre perfeita, mas, mesmo no meio de imperfeições e quedas, continuaram a caminhar e agradaram ao Senhor.”
Alegrai-vos e exultai!
Padre Hugo Gonçalves