1. Todas as festas têm um tempo de preparação. As crianças, na proximidade do aniversário, já andam a dizer a toda a gente que vão fazer anos, indicando mesmo os presentes que querem receber. O mesmo acontece com elas quando está perto o Natal, escrevendo até cartas ao Menino Jesus. Os jovens deixaram-se tomar por uma alegria intensa no começo de um namoro, mas este é apenas o primeiro passo de quem quer viver um noivado e, depois, constituir família. Os estudantes universitários trabalham com exigência para concluir a licenciatura, o mestrado ou o doutoramento. Em todos os grandes acontecimentos sabe-se ser necessário um tempo de preparação. Nas festas em sociedade preparam-se as salas ao pormenor e os convidados escolhem com cuidado a maneira como se vão apresentar. Nas festas religiosas, um casamento ou um baptizado, tem-se o maior cuidado na preparação do ambiente da família, mas também dos momentos de espiritualidade dos noivos no sacramento do matrimónio ou dos pais na oração pela criança pequenina que vai entrar na comunidade cristã. Todos os grandes acontecimentos exigem uma preparação cuidada. É assim também com a Páscoa da Ressurreição. As comunidades vão celebrar a Ressurreição do Senhor, e por isso se exige prepará-la com um caminho longo, 40 dias a que se chama Quaresma.

. As primeiras comunidades cristãs preparavam a Páscoa com uma vigília que começava ao fim da tarde e terminava na madrugada de Domingo, o primeiro dia da semana. 

. No século II acentuou-se a necessidade de uma preparação mais cuidada. Primeiro foram três dias, com a instituição do Tríduo Pascal; e, mais tarde, uma semana de oração intensa a preparar a Páscoa. 

. No século III iniciou-se um caminho pastoral simples e exigente de 3 semanas de preparação para a Páscoa com um roteiro já suficientemente estruturado. 

. Foi, porém, no século IV, no Concílio de Niceia, em 325, já com a liberdade religiosa concedida pelo Imperador Constantino, que a Igreja instituiu a Quaresma como tempo de preparação para a Páscoa do Senhor

Escolheram-se 40 dias à semelhança do caminho que o profeta Elias fez até ao Monte Horeb, os 40 dias da estadia de Jesus no deserto da Judeia, antes de começar a sua vida pública, e, até, os 40 anos do caminho da libertação vivida pelo Povo de Deus até à Terra Prometida. Também os cristãos são convidados a viver 40 dias de oração intensa para fazerem o caminho de preparação para a Páscoa.

2. Na mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2016 é proposto um desafio colhido do Evangelho de Mateus: “Prefiro a misericórdia ao sacrifício” (Mt 9, 13), com um subtítulo exigente: “As obras de misericórdia no caminho jubilar”. Receber o perdão de Deus, expressão máxima da sua infinita misericórdia, é uma graça incalculável, é um dom de natureza pascal. Nesta Quaresma é preciso mais: possuídos da misericórdia de Deus, devem os cristãos exercer a misericórdia para com todos os outros. De forma muito clara o Papa Francisco dá aos cristãos três ideias fortes para viverem esta misericórdia, fazendo dela o ponto de partida para o caminho quaresmal. Diz o Papa:

.  Maria, ícone de uma Igreja que evangeliza porque evangelizada: Maria, por ter acolhido a Boa Notícia que lhe foi dada pelo Arcanjo Gabriel, canta profeticamente no Magnificat a misericórdia com que Deus a predestinou. Como Maria, a Igreja quer evangelizar. Continua a ser evangelizada pelo Espírito Santo, que fecundou o seu seio virginal. 

. A aliança de Deus com os homens, uma história de salvação: Deus mostra-se sempre rico de misericórdia, pronto em qualquer circunstância a derramar sobre o seu Povo uma ternura e uma compaixão profundas, sobretudo nos momentos mais dramáticos de Israel, na defesa intransigente da justiça e da verdade. 

. As obras de misericórdia: a misericórdia de Deus transforma o coração do homem e faz-lhe experimentar um amor fiel, tornando-o assim, por sua vez, capaz de misericórdia. Reflectir sobre as obras de misericórdia corporal e espiritual é uma maneira de acordar a nossa misericórdia, muitas vezes adormecida perante o drama da pobreza.

De uma maneira muito bonita o Papa Francisco termina a sua mensagem com um apelo: “Nós devemos oferecer este tempo favorável da Quaresma à conversão. Pedimo-lo pela intercessão de Maria, a primeira que, diante a grandeza da misericórdia divina que lhe foi dada, reconheceu a sua pequenez, considerando-se a humilde serva do Senhor.”

3. Na nossa comunidade paroquial do Campo Grande, vai viver-se a Quaresma sob o signo da misericórdia: “ Misericordiosos como o Pai”. É a mensagem do ícone do Jubileu. Durante estes 40 dias, ajudados pela misericórdia de Deus, vamos tentar viver individualmente com um coração misericordioso. O caminho quaresmal tem 6 etapas que são ditadas pelo Evangelho de cada domingo. 

. As tentações de Jesus no deserto (1º domingo). Preparar o coração para se ser misericordioso para com todos é o desafio da primeira semana da Quaresma. O grande objectivo é libertar o coração das tentações do ter, do poder e do prazer, abrindo-o à partilha, ao serviço e à disponibilidade para com todos. 

. A transfiguração de Jesus no Tabor (2º domingo). Deixar entrar a misericórdia de Deus no nosso coração. Ao transfigurar-se, Jesus revelou-se Filho de Deus, o único que é capaz de nos transformar completamente para, libertos dos egoísmos, sermos misericordiosos como o Pai que nos deu o seu Filho muito amado. 

. A condescendência para com a figueira estéril (3º domingo). Deus revela-se para connosco tão misericordioso, que dá repetidas oportunidades de conversão. Se no caminho se sucedem as infidelidades, o Deus da Misericórdia continua a esperar o momento de arrependimento do pecador. 

. A Parábola do Filho Pródigo (4º domingo). O Senhor, Pai de Misericórdia, não só perdoa como confia ao pecador a capacidade de, convertido, se dispor a servir os outros sem condições. O Pai perdoou ao filho mais novo que desperdiçou os bens da casa numa vida dissoluta, mas perdoou também ao filho mais velho que, cumpridor, estava dominado pelo egoísmo e pela arrogância. 

. O episódio da mulher adúltera (5º domingo). O perdão para com a mulher pecadora é o sinal de que o perdão é dado a todos. O desafio é outro: “o que estiver sem pecado atire a primeira pedra” (Jo 8-7). Ninguém tem direito de julgar e todos têm o dever de acolher quem quer que seja. O Deus da Misericórdia chama todos a serem misericordiosos.

  . A narrativa da Paixão e Morte de Jesus (Domingo de Ramos). Em cada passo da Via Sacra surgem homens e mulheres desconhecidos que, perante a pessoa de Jesus, se dispuseram a ser misericordiosos para com o injustiçado. Neste quase fim de Quaresma, ao contemplar a entrada de Jesus em Jerusalém e a sua crucifixão, compreende-se que na vida humana se cruzam a glória e a condenação. Saber viver as duas situações pede a misericórdia de Deus e reclama a misericórdia para com todos. É esta a vocação cristã.

Este itinerário quaresmal é de rara beleza. Quando chegar a Páscoa, “encharcados” com a misericórdia do Pai, os cristãos devem ser misericordiosos para com todos. Ao amor recebido de Deus, responde-se com o amor distribuído pelos irmãos.

4. Em Quarta-Feira de Cinzas começou o caminho para a Páscoa. Logo nesse primeiro dia nos foi recomendada a importância da esmola, da oração e do jejum. Que a esmola se converta em partilha generosa, porque o ser cristão refere o destino universal dos bens da terra; que a oração se transforme num diálogo comprometido, que a experiência vital de Deus proporciona e entusiasma; que o jejum seja uma forma expressiva de frugalidade nas mais pequeninas coisas, porque só um coração simples é capaz de “ser misericordioso como o Pai”.

Pe. Vítor Feytor Pinto - Prior