«Um homem, grande especialista em peixes, determinado a investigar o seu “mundo”, faz-se ao mar com as suas redes para pescar.
Depois de muitas capturas e de análises cuidadas dos peixes capturados ele faz a sua descoberta do primeiro princípio da ictiologia, a ciência dos peixes: “Todos os peixes têm um tamanho superior a 10 centímetros”! Ele toma esta como uma lei fundamental, pois em nenhuma das vezes em que lançou a rede ao mar ele capturou um peixe que fosse de dimensão inferior, procedendo a uma generalização da observação em causa.
No caminho de regresso a casa ele encontra-se com um amigo, o qual chamarei aqui de metafísico, e contalhe acerca da sua grande descoberta. Este, porém, responde-lhe: “Isso não tem nada a ver com uma lei fundamental! Pois a tua rede é simplesmente demasiado rudimentar, de tal modo que os peixes mais pequenos simplesmente se escapam através das malhas”.
Mas o especialista em ictiologia não se deixa impressionar por este argumento e responde com determinação: “o que quer que seja que eu não possa apanhar com a minha rede está fundamentalmente fora do saber respeitante aos peixes, pois se trata de algo que nada tem a ver com aquilo que constitui o objecto da ictiologia. Na minha qualidade de ictiólogo o que se aplica é o seguinte princípio: “Aquilo que eu não posso capturar, pura e simplesmente não é peixe!”»
Hans-Peter Dürr, “Física e Transcendência”, Revista Portuguesa de Filosofia. Adaptação
Fez-me pensar a atitude deste homem que estava habituado a mexer com peixes, acostumado a viver uma vida que ele dominava e a definir as regras da sua investigação. Como cientista, levava a sério o seu trabalho sobre os peixes e escolheu a rede através da qual conduzia todo o seu estudo. E nada de lhe virem dizer que aquele princípio não se podia alterar! Nada de insinuar que ele é que podia estar a não capturar bem, nada de dizer que podia existir peixes mais pequenos!
Talvez todos nós tenhamos muito de homem dos peixes. Frequentemente, olhamos o mundo com uma rede muito larga e há muita coisa que nos escapa, talvez mesmo o mais importante. Convencemo-nos da razão que têm os homens dos peixes. E habituamo-nos a dizer, como eles: o que não posso capturar não é peixe.
Talvez por isso, criamos para nós, e para o mundo, princípios que nos deixam satisfeitos com a vida que levamos, princípios inalteráveis que nos proporcionam segurança, prosperidade e conforto. Princípios que nos permitem viver tranquilos e alheados de certos níveis de questionamento e compromisso. Princípios que colocam as nossas certezas, o nosso potencial e as nossas conquistas pessoais acima de tudo. Princípios que conseguimos “captar” com a nossa rede.
Uma rede que talvez deixe escapar a espuma do eterno.
Padre Hugo Gonçalves