1. Recordo-me dos meus tempos de criança e da primeira catequese onde se aprendia quem era Deus, se conhecia um grande amigo, Jesus, se pedia ao Espírito Santo especial ajuda e, finalmente, se participava na vida da Igreja, através da Paróquia a que se pertencia. A minha Paróquia era a Sé de Castelo Branco. A minha catequista, a Senhora D. Júlia, o meu pároco, o Cónego José Dias. Este tempo marcou a minha vida de cristão e talvez tenha sido a primeira porta que se abriu para o meu sacerdócio. Tinha-se, então, o catecismo de S. Pio X que, com fórmulas muito claras, iluminou a cultura de muitas gerações, mesmo das pessoas que, no decurso da vida, perderam a fé. Curiosamente, algumas fórmulas ficaram para sempre. Poderá perguntar-se o porquê desta minha recordação. É simples: ao instituir o Jubileu da Misericórdia, na bula Misericordiae Vultus, Francisco Papa pede para “sermos misericordiosos como o Pai” e indica como caminho as obras de misericórdia corporal e espiritual. As obras de misericórdia faziam parte das fórmulas do catecismo de S. Pio X. O nosso Patriarca vai mais longe. Pede-nos agora, na sua mensagem para a Quaresma: “Apliquemo-nos com redobrado esforço a cada uma delas, no singular e no conjunto. Vamos enunciá-las na sua formulação tradicional e facilmente memoráveis”. O nosso Patriarca considera um bom exercício quaresmal aprender as obras de misericórdia de cor, até à Páscoa, e não é demais. Começo já aqui. 

. As corporais: 1º dar de comer a quem tem fome; 2º dar de beber a quem tem sede; 3º vestir os nus; 4º dar pousada aos peregrinos; 5º assistir os enfermos; 6º visitar os presos; 7º enterrar os mortos. 

. As espirituais: 1º dar bom conselho; 2º ensinar os ignorantes; 3º corrigir os que erram; 4º consolar os tristes; 5º perdoar as injúrias; 6º sofrer com paciência as fraquezas do nosso próximo; 7º rezar a Deus pelos vivos e pelos mortos.

E o senhor Patriarca conclui: “lembrando cada uma, imediatamente nos ocorrem concretizações urgentes ou possíveis. Nas nossas casas, comunidades, escolas, hospitais, prisões, locais de trabalho ou convívio, não faltam ocasiões e apelos”.

2. As obras de misericórdia corporais são certamente as mais fáceis de realizar. Há pessoas em crise, em dificuldades concretas cuja resposta está ao nosso alcance. Hoje, o Papa Francisco diz que a confissão de fé se faz pela acção social. Se na Quaresma é urgente renovar-se cada um na sua fé, então torna-se necessário empenhar-se expressamente na acção social. Há quem tenha fome e sede, há quem esteja doente ou preso, há quem esteja sem abrigo, caminhando sem rumo: é a cada um destes que eu tenho de revelar a misericórdia do Pai. 

. Dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede e vestir os nus. Cruzamo-nos todos os dias com pessoas que têm estas razões de sofrimento, as fomes e as sedes mais diversas, a nudez do corpo e a nudez da alma. Conhecemo-los. O que vou fazer nesta Quaresma? 

. Cuidar dos enfermos, visitar os presos, estar atento aos emigrantes e refugiados. O maior drama do mundo contemporâneo é a solidão. Há muita gente que está sozinha na vida. O corpo e a mente foram afectados pela doença ou pela idade. Estão à nossa espera, de uma nossa palavra de conforto, de um sorriso, de um aperto de mão, da garantia de uma presença contínua. Que têm eles todos a ver com a minha Quaresma? 

.  Enterrar os mortos. Acompanhar as famílias que perderam alguém a quem estavam profundamente ligados, na família, no trabalho, na amizade, é a missão de quem tem é sensível à saudade dos outros. Fazer o luto com as pessoas que estão cheias de saudade, saber acompanhar, conseguir valorizar os silêncios, tudo é uma forma maravilhosa de amar. A Quaresma também passa por aqui.

As obras de misericórdia corporal, sendo as más fáceis de entender, podem ser as mais difíceis de viver, porque requerem o esquecimento de si próprio e, até, a partilha de vida que nem sempre é fácil. Não bastam intenções generosas, são insuficientes as orações repetidas, exigem-se gestos de ternura, de amor, de misericórdia concreta e assumida.

3. As obras de misericórdia têm de ser compreendidas para mais intensamente serem vividas. Conduzem a uma relação muito forte com os outros se estiverem revestidas de simplicidade, de humildade, de alegria pelo bem que se oferece e pela esperança que se procura. Quem acolher este tipo de misericórdia espiritual, renasce no mais profundo do seu ser, da sua inteligência e do seu coração. 

. Dar bom conselho, ensinar os ignorantes e corrigir os que erram. Estas três obras de misericórdia supõem uma atenção muito grande a pessoas que têm dificuldades no campo dos conhecimentos, das decisões ou das atitudes. Para discernir sobre o que fazer pedem-se muitas vezes conselhos aos amigos; para aprender tantas coisas que passam despercebidas pede-se o auxílio a quem pode ajudar; porque é fácil errar, é sempre bom ter alguém que com amizade sabe dizer: não vás por aí. Estas são obras de misericórdia que iluminam a inteligência e o conhecimento, sendo um exercício de misericórdia espiritual indispensável nesta Quaresma. 

.  Consolar os tristes, perdoar as injúrias e sofrer as fraquezas dos outros. São obras de misericórdia que pedem a sabedoria do coração. Com o coração que ama, vai-se ao encontro do outro para lhe dar serenidade e paz. O coração misericordioso sabe perdoar sempre, ainda que sejam grandes as ofensas. O perdão é mais importante que todas as orações e sacrifícios que se façam pelos outros. Aceitar cada um como ele é, na sua fraqueza ou na sua prepotência, é virtude cristã indispensável à relação fraterna. Perdoar sempre, confortar os que sofrem, acolher os que têm um temperamento difícil, tudo isto pode ser programa para um coração bom que quer viver a Quaresma de maneira diferente. 

. Rezar a Deus pelos vivos e defuntos. A oração é sempre um desafio maravilhoso. Longe de centrar a oração em si próprio, o que é pedido a cada um é que pense nos outros, se dê aos outros e que reze sempre mais pelos outros, antes e depois da sua partida para Deus. A oração também é forma de misericórdia quaresmal.

A vida do cristão pauta-se pelo amor fraterno. Os outros têm sempre o primeiro lugar. Acolhê-los, compreendê-los, servi-los é um caminho concreto da misericórdia. Ao nível do espiritual toda a acção do cristão é um exercício de amor sendo solidário com o outro, mesmo nas situações mais difíceis. É uma expressão de amor que santifica quem o pratica porque todo o bem feito ao outro é a Jesus que se faz; é testemunho de amor, verdadeiro campo de evangelização, uma vez que só pelo amor vivido os que não crêem se aproximam do Evangelho.

4. É frequente os cristãos, no início da Quaresma, perguntarem-se que penitência devem fazer, ou que acções deverão marcar a sua renovação espiritual. Tomam-se por vezes pequenos gestos como não fumar, não comer doces, não ir ao cinema, não ver televisão. Sendo interessantes estes exercícios de penitência, não é certamente o mais motivador da mudança de vida, até porque ao terminar a Quaresma se retomam os mesmos hábitos. Quer o Papa Francisco, quer o nosso Patriarca pedem-nos que a Quaresma seja para os cristãos tempo de renovação das obras de misericórdia. Estas vão durar para sempre.

Pe. Vítor Feytor Pinto-Prior