Uma das realidades mais difíceis de aceitar para os discípulos foi a possibilidade de perderem Jesus. Não só pelo enorme afecto  que lhe tinham –  afinal, ele tinha mudado as suas vidas, tinha-os resgatado, tinha reposto a esperança nos seus corações  –  mas também porque isso parecia implicar o fracasso das expectativas que alimentavam em relação ao projecto que Ele vinha realizar. Em diversos momentos, Jesus tenta ajudá-los a mudar, na mente e no coração, essa forma de olhar as coisas. Uma das imagens mais bonitas que Jesus encontra para o fazer é a da semente: “se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto”  (Jo 12,24).  Para realizar, em plenitude, a sua missão de gerar novas sementes, de continuar o ciclo da fertilidade, o grão tem de aceitar uma transformação radical: morrer para dar muito fruto. Penso que essa é a vocação que a Igreja,  constantemente, tem de assumir como sua.  A disponibilidade para  a  transformação,  para  ser  trigo  lançado  à  terra,  para  entregar  o  que  tem  a  entregar,  aparentemente arriscando  perder  para  poder  colher  as  sementes  que  é  chamada  a  produzir  e  a  relançar  sempre .  É  um dinamismo de transformação e mudança constante, que encontramos expresso nos textos bíblicos e na vida da Igreja ao longo do tempo.

Abraão, o pai da fé, aceitou mudar toda a sua vida para responder ao convite e à promessa feita por Deus: se tiveres a ousadia de sair, de experimentar o desconforto, de arriscar trocar o certo pelo incerto, dar-te-ei o que o teu coração mais anseia. E Abraão pôs-se a caminho.

Moisés, o homem forte da Aliança, era aquele que antes não sabia falar. Seduzido pela chama  que ardia na sarça e não se consumia, deixou que esse fogo ardesse no seu coração e o levasse a resgatar o povo, escravo no Egipto, mudando para sempre as suas vidas e o curso da história. Moisés, o  homem fraco que enfrentou um Faraó poderoso e venceu.

Maria, a jovem desposada com José, para quem se adivinhava uma vida de normalidade, semelhante à de todas as jovens do seu tempo, assumiu dar uma resposta que mudou para sempre a sua vida, os seus projectos, o seu conforto e, juntamente com isso, a nossa vida.  Sem a sua disponibilidade para mudar tudo isso, para deixar-se mudar, o que aconteceria a seguir seria, talvez, muito diferente.

Paulo de Tarso, o judeu zeloso, aluno brilhante de Gamaliel, que gozava da confiança e da promoção dos seus  chefes,  cego  pelo  ódio  contra  os  cristãos,  deixa-se  ferir  por  uma  cegueira  iluminada  no  caminho  de Damasco. A cegueira escura é vencida pela cegueira provocada pelo excesso de luz. E Paulo mudou. Tudo. Percebeu um caminho novo e nada o deteve até cumprir a missão que lhe era confiada. Esta mudança interior que aconteceu em Paulo, foi possibilitadora de uma mudança radical na forma de evangelizar, nos destinatários da evangelização e, sobretudo, libertou definitivamente os pagãos da necessidade de passar pelos preceitos do judaísmo para aderirem a Jesus. Desde  o  tempo  dos  Apóstolos,  até  aos  nossos  dias,  a  história  da  Igreja  fala  de  inúmeros  processos  de transformação e mudança, que se constituíram fundamentais no tempo em que aconteceram. Não tenho espaço para os referir e, por isso, dou um salto temporal para tempos mais próximos de nós.

João XXIII, o papa bom, sucedeu ao Papa Pio XII que exerceu um longo pontificado. Todos pensavam que este seria um pontificado de transição, sem grandes feitos. Mas o Papa João XXIII, surpreendeu o mundo ao convocar o Concílio Vaticano II, que viria a ser o maior Concílio da história e que ajudou a Igreja à mudança que o tempo pedia, aproximando-a mais da realidade e das pessoas que é chamada a servir. Tudo parecia desaconselhar a convocatória  do Concílio:  razões teológicas, pastorais, políticas e financeiras foram evocadas. Mas o Papa decidiu avançar com o  aggiornamento  que sabia não poder adiar mais. Perguntado acerca das suas intenções, disse com simplicidade: “Vou abrir a janela para ver o que acontece do lado de fora e para que o mundo possa ver o que acontece na nossa casa”. Abandonando uma lógica de preservação, o Papa arriscou o diálogo com a realidade. Isso mudou definitivamente o rosto da Igreja e a sua relação com o mundo.

João Paulo II, o papa peregrino, teve um pontificado longo, corajoso, apaixonado.  Foi o primeiro papa não italiano em muitos séculos e, mudando o hábito de o Papa se ausentar o menos possível do Vaticano, foi o que mais viajou, no seu desejo de estar próximo das pessoas e da sua realidade em todos os cantos do mundo. Transformou a Igreja em muitas dimensões, mas a sua coragem e determinação mudaram o cenário político do mundo. Ele, que sentira na pele o terror do nazismo e do comunismo, não temeu envolver-se politicamente na história e transfigurou o rosto de uma Europa marcada pelas divisões e desconfianças, pondo fim a um regime totalitário e injusto. A sua vida esteve ameaçada por várias vezes, mas nada o impediu de ser grão lançado à terra, quando estava em causa o muito fruto que era preciso gerar.

Finalmente, o Papa Francisco, pai dos pobres. Desde que assomou à varanda de São Pedro no dia da eleição, até ao momento presente, nunca parou de nos surpreender. E surpreendeu-nos com a coragem de quem vive o  Evangelho  na  sua  maior  simplicidade.  Sem  mudar  o  Evangelho,  mudou  tudo.  Desde  o  que  estava convencionado que devia vestir, ao lugar onde devia morar, aos carros em que devia viajar, à hierarquia que devia respeitar nas suas atenções e cumprimentos. Há anos que tudo era feito de uma determinada maneira, até chegar um Papa que  percebeu que era preciso mudar. Ironicamente, Francisco continua a granjear afecto junto dos que estão afastados da Igreja e a ser posto em causa pelos que, pelas funções lhe são mais próximos, até alguns cardeais.

A disponibilidade para mudar o que tem de ser mudado, corajosamente, faz parte da nossa identidade. E  isso  aplica-se  tanto  à  nossa  vida,  como  à  comunidade  a  que  pertencemos.  Essa  transformação  causa desconforto e hesitação e, por vezes, dor. É assim a história do grão que, lançado à terra, morre para assegurar a perenidade e a fertilidade da sementeira.

Padre Hugo Gonçalves