Solenidade da Epifania

 

Jesus é o centro da história. Para nós há um antes e um depois de Cristo. E Ele marca a arquitectura, a forma do nosso tempo. Mas marca de uma maneira que é uma novidade.

Hoje, na Carta aos Efésios, o autor paulino lembrava-nos que, de facto, há um salto, há uma ruptura que acontece com o nascimento de Jesus. Até Jesus era um tipo de revelação de Deus – os homens tinham uma determinada forma de conhecer a Deus. Mas em Jesus é o inédito de Deus que nós somos chamados a tocar. Não é um Deus novo mas é um modo novo, um modo mais universal de falar de Deus. E como lembra o autor da Carta aos Efésios, pode-se resumir neste refrão: o inédito de Deus – os gentios recebem a mesma herança que os judeus, pertencem ao mesmo corpo, e participam da mesma promessa em Jesus Cristo.

Nós celebramos o Natal do Senhor, fazemos do Natal o encontro da família. E é muito belo. Mesmo quando é doloroso, é muito belo. A família encontrar-se, reunir-se, fazer um esforço para estar juntos, sentar-se à volta da mesa, sentir que é família, e todas as tradições nos fazem viver o aconchego daqueles que estão mais próximos de nós. Sentimos, de facto, que o Natal é uma festa, é um momento de alegria, é um dos pontos culminantes do nosso ano. Porque, na comunhão fraterna, nós aproximamo-nos de Deus, avizinhamo-nos de Deus, damos glória a Deus. E, contudo, a Carta aos Efésios hoje lembra-nos, tal como a Festa da Epifania, a grande novidade de Jesus. Jesus não veio apenas para a nossa família, Jesus não veio apenas para o nosso círculo de conhecidos, Jesus não veio apenas para a minha paróquia, para a minha comunidade. O nascimento de Jesus é uma verdade muito mais extensa, muito maior, muito mais transbordante. Porque Jesus veio para todos! E por isso é tão belo no presépio termos aqueles que não deviam estar, que não são da nossa família – os Reis Magos. São “outros”, são estranhos, são gentios, são pagãos; vêm sabe-se lá de onde, vêm à procura de estrelas, a tactear na noite escura. E, contudo, para nós a representação do presépio é também contar com eles, com a viagem que eles fazem até ao encontro de Jesus.

Queridos irmãs e irmãos, o que distingue o Cristianismo não é a crença no Deus único, porque nós partilhamos essa crença com outras tradições religiosas; não é apenas uma moral, não é apenas uma ética, porque nós encontramos em tantas outras tradições espirituais e humanas pessoas com uma elevação ética extraordinária. O que distingue o Cristianismo é o nosso centramento na pessoa de Jesus. E na revelação que Ele é para nós do amor de Deus, da Salvação de Deus. E Jesus faz escancarando as portas, derrubando as fronteiras, abrindo os corações à universalidade. Então, o Natal para nós é também este desafio – nós, que vivemos o Natal na nossa família, não nos esqueçamos que pertencemos à grande família humana. Nós, que vivemos o particular, não nos esqueçamos do universal. Porque Jesus vem colocar no centro da nossa vida Deus – o olhar de Deus, o sorriso de Deus, a compaixão de Deus. Mas Deus não é monopólio de ninguém. Nem de nós. Deus não é uma verdade que tenhamos no bolso. Nós, que estamos aqui, nós somos buscadores, somos enamorados, somos peregrinos. Nós não temos Deus! Nós andamos à sua procura, nós estamos de coração aberto. Também nós tacteamos, também nós duvidamos, também nós perguntamos. Mas nós estamos aqui sentindo-nos um povo que procura, um povo que busca. Porque Deus só tem filhos, só tem exploradores, só tem questionadores. Gente que procura. Não tem donos. E isto para nós é muito importante porque muitas vezes nós somos obstáculo ao encontro de Deus. E temos de fazer sempre um mea culpa, porque muitas vezes nós privatizamos Deus. Deus é uma questão nossa, tem a ver connosco, faz muito sentido, mas não pensamos nessa experiência que nós fazemos e que é um grande dom – a fé é o maior dom. E esse dom que nos foi dado é uma responsabilidade muito grande. E essa responsabilidade começa por percebermos que aqueles que não têm fé também nos ensinam alguma coisa acerca de Deus. Os ateus, os não crentes, também têm uma palavra a dizer acerca de Deus. E, se calhar nós, crentes, e não crentes, devíamo-nos sentar mais vezes a conversar sobre Deus. E conversar sobre Deus é conversar sobre isto que somos, este mistério que somos.

Como dizia Sophia de Mello Breyner Andresen – cujo conto escutámos esta tarde, guiados pelo Luís Miguel Cintra e pelo Guilherme Gomes – nós, humanos, não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência. Não somos apenas isso. Em nós há uma sede, em nós há uma fome, em nós há um desejo, em nós há uma procura. Que não se consuma no imediato, no visível, no que podemos tocar. Nós somos seres carecidos de infinito, feridos pelo infinito. Com essa saudade, com esse desejo de Deus. Mas não apenas nós, que estamos aqui. Nós e aqueles que não estão aqui. E aqueles que nunca colocarão os pés numa igreja. E aqueles que olham com desconfiança para os nossos ritos e práticas. Deus também é um património deles! E nós precisamos aprender, ouvir, escutar, conversar com ele acerca de Deus. O Evangelho de hoje ensina-nos isso. Porque fala-nos de quê? De gente que não tem escrituras, que não tem uma tradição sagrada, que não tem profecias. Mas tem um céu estrelado diante de si. E, olhando para aquele céu estrelado, e comunicando o céu com a sede, com a ânsia do seu coração, aqueles homens fazem uma viagem. E, muitas vezes, na vida de milhões de pessoas, uma viagem é uma deslocação de lugar, de ponto de vista, e é uma oportunidade para encontrar outras linguagens, outras vivências, outras experiências, para sair de si. Estes homens saem de si. Eles não sabem ao que vêm, Deus não tem nome para eles. Eles vêm bater à porta de Herodes, e perguntar – “Olha, nós vimos uma estrela no céu, e nasceu o Rei dos Judeus. Mas onde é que ele nasceu? Onde é que ele está?”. E é isso – pode-se viajar, pode-se caminhar, mesmo quando não se sabe, mesmo quando não se conhece. Deus é um mistério, Deus é sempre o desconhecido. E muitas vezes aqueles que não têm, eu diria – e perdoem-me – o vício de forma que muitas vezes nos dá sermos fiéis, frequentadores, rotineiros, habituados, muitas vezes pessoas que não têm essa instalação, esse conformismo, olham para as coisas com outra profundidade, com outra verdade. Escutam com ouvidos mais novos do que os nossos as profecias. Herodes tinha as profecias, mas uma coisa é possuir as profecias, outra coisa é viver a profecia. E nós temos de nos perguntar se não ficamos como aqueles que possuem as profecias, as tradições, os ritos. Nós possuímos isso tudo, mas não basta possuir; é preciso viver, é preciso ser possuído por isso que nós possuímos.

E eles vêm fazendo perguntas. E depois ousam seguir a profecia. E quando vão até Belém Herodes – interessante – manda-os à frente. E eles vão! E quando se põem a caminho de novo veem a estrela. E a estrela pousada diante do Menino. E eles são capazes, vindos de tão longe, de acolher a revelação de Deus como ela se dá – na surpresa desconcertante da nossa humanidade. Eles vieram de tão longe e não encontraram um rei sentado no trono; encontraram um bebé colocado numa manjedoura. E ali prostram-se, adoram, oferecem-lhe os seus presentes. E isto é para nós uma lição muito grande porque, no coração do homem há um desejo de Deus. Mesmo no coração do ateu mais fechado, há um desejo de Deus. Porque a pegada de Deus é uma pegada irremovível do coração humano. E por isso quando estes gentios encontram Jesus, eles saem diferentes. O evangelho de Mateus diz-nos, de forma resumida mas também densa, que eles deixaram o presépio e seguiram viagem por outro caminho. É a porta de uma renovação, de uma mudança de estrada, de uma nova direcção que eles descobrem.

Queridos irmãs e irmãos, é uma responsabilidade para nós sermos crentes. É uma responsabilidade que na nossa família nós, que estamos aqui, sejamos os crentes. Que, no nosso local de trabalho, nós sejamos os católicos. Que, na nossa cidade, sejamos aqueles que os outros dizem “Ah, vocês estão nas celebrações, vocês acreditam em Jesus”. Isso é uma grande responsabilidade para nós – e a primeira responsabilidade é esta: a de testemunharmos a universalidade da salvação. Sim, eu sou crente, mas a fé é maior do que eu. E a fé não é apenas para mim. A fé é um anúncio, é uma possibilidade dada a todos. Sim, eu venho à Eucaristia, mas a Eucaristia é um mistério celebrado de portas abertas. Podem vir, podem fazer o caminho, podem fazer a mistagogia, a iniciação ao mistério. Nós temos os Evangelhos, mas eles não são nossos, não estão escritos numa língua estranha. Podem ser o lugar da vossa procura. Por isso o Papa Francisco desafia tanto a Igreja do nosso tempo a ser uma Igreja em saída, a ser uma Igreja missionária, a cumprir o sonho missionário de chegar a todos.

Queridos irmãs e irmãos, no final da celebração do mistério do Natal, temos a Festa da Epifania. O nascimento de Jesus, o Deus connosco, tem de resplandecer e cada um de nós é testemunha, cada um de nós que está aqui é um implicado nesse nascimento, e é chamado a transportar essa boa nova, essa alegria, essa possibilidade de encontro a todas as mulheres e a todos os homens. Nós não vivemos o mistério em função de nós próprios, da nossa auto referencialidade, da nossa auto preservação, mas nós vivemos este mistério em Deus que é amor, que tem um coração onde todos cabem. E por isso, na nossa maneira de olhar, na nossa maneira de estar, nas escolhas que fazemos, na construção do mundo que efectivamos, temos de ter isso em conta – a universalidade. Porque este Menino que nasceu ensina-nos a nascer.

Nós, dentro de dias, começamos a arrumar os presépios dentro dos sacos, dentro das caixas, mas é importante que não arrumemos o espírito do presépio porque Jesus já nasceu há dois mil anos. Quem precisa de nascer hoje somos nós. Somos nós.

5 Janeiro 2020