1. Quando Paulo Apóstolo começou a fundar as comunidades cristãs, a sua primeira preocupação foi anunciar Jesus Cristo Ressuscitado. Pela Boa Nova que proclamou, pelos inúmeros milagres que fez, pelos valores que defendeu, Jesus tornou-se incómodo para o poder religioso do tempo. Sumos-sacerdotes, doutores da Lei, fariseus e saduceus, todos, na cidade de Jerusalém, espreitavam uma oportunidade para o condenar à morte. Com sentença injusta dos tribunais religioso, político e popular, Jesus foi mesmo condenado à morte na cruz. Na madrugada do 3º dia, porém, ressuscitou, vencendo a morte. Paulo irá anunciar a Ressurreição de Jesus com o seu testemunho, uma vez que Jesus lhe apareceu na Estrada de Damasco e lhe pediu para ser apóstolo dos gentios. As cidades gregas mais eruditas não acreditavam na Ressurreição. Paulo dirá, por isso, aos Coríntios: “alguns dizem que não há ressurreição, mas se não há ressurreição também Cristo não ressuscitou, a nossa fé é vã, a nossa palavra não tem sentido e somos os mais infelizes dos homens” (cf 1 Cor 15, 12-19). Acrescenta, porém, que porque Ele ressuscitou, “a vida não acaba, apenas se transforma e, desfeita a tenda do exílio terrestre, adquirimos no céu uma habitação eterna” (2 Cor 5, 1). A partir de então, os cristãos sabem que como Cristo ressuscitou, também nós ressuscitaremos. Os cristãos acreditam na imortalidade, têm a certeza da Bem-Aventurança eterna e é esta certeza que orienta toda a nossa esperança.

2. Poderá perguntar-se, neste início do novo ano, porque falamos da ressurreição e da bem-aventurança, na morada eterna de Deus? Simplesmente porque alguns dos nossos amigos foram vencidos pela morte, quando nós desejaríamos que estivessem ainda no meio de nós. Não nos basta rezar pelos que partem e confortar, com a luz da fé, os que continuam o seu caminho no tempo. É preciso ir mais longe e descobrir os valores que nos deixam e que os tornam vivos no meio de nós. Podemos falar de quatro pessoas que agora partiram ao encontro de Deus, mas que acreditamos estarem vivos, indicando-nos caminhos a prosseguir. Na nossa comunidade recordamos: Alfredo Bruto da Costa, João Lobo Antunes, Daniel Serrão e Mário Soares.

. Alfredo Bruto da Costa marcou a sociedade com a sua preocupação constante pelos mais pobres. Quer nos seus estudos, quer na sua intervenção cívica e política, lutou para vencer a pobreza e abrir aos mais carenciados algumas portas de esperança. A sua fé norteou toda a sua vida e o compromisso cristão foi a marca da sua intervenção social e política. Foi, na Igreja, Presidente da Comissão Nacional Justiça e Paz.

. João Lobo Antunes foi um cientista de grande renome, na arte médica. Conhecedor profundo do cérebro humano, com a sua intervenção cirúrgica salvou inúmeras vidas. Aliava à ciência uma profunda sensibilidade ética. A defesa da dignidade e da liberdade humanas, quer no ensino universitário, quer na solução dos casos humanos, revelava no professor um grande sentido cristão da vida. Presidente da Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida, tornou-se referência para quem ama a vida, a defende e a promove.

. Daniel Serrão foi, ao longo da vida, uma referência para o diálogo estreito entre a ciência e a fé. Estas duas realidades não são contraditórias, mas complementares. O cientista revelou-se sempre, com grande clareza, como cristão, capaz de sentir e viver na investigação científica a presença de Deus. Com uma fé profunda, nunca se deixou enredar nas dúvidas que tantas vezes assaltam os homens da ciência. Pelo contrário, a sua reflexão, a sua prática clínica, a sua vida académica, a sua sensibilidade ética, o seu respeito pela pessoa humana, sempre lhe permitiram saber que é Deus o autor e Senhor da vida. Por isso foi membro, na Santa Sé, da Academia da Vida.

. Mário Soares recebeu do pai, católico convicto, os valores do Evangelho. A certa altura da vida, acompanhou a conversão e, depois, a vida cristã da sua mulher, com um respeito profundo. Dizia que a fé era um dom que lhe não fora dado. Mas o seu amor à liberdade, que é também um dom de Deus, a sua preocupação por servir o bem-comum, quando vencia ou quando perdia, o seu amor à vida, conduziram-no a um respeito profundo por todas as pessoas crentes ou não crentes. Com razão pode ser considerado um laico com profundo sentido ecuménico. Foi o primeiro presidente, em Portugal, da Comissão para a Liberdade Religiosa.

Estas quatro figuras públicas, agora que partiram ao encontro de Deus, não podem deixar de estar vivas nos exemplos que nos foram dados. A capacidade de servir sempre o bem-comum, a procura de uma fé comprometida mesmo através da investigação científica e do estudo constante, a sensibilidade ética na luta pela dignidade e pela liberdade humanas, a solidariedade com os mais pobres em todas as circunstâncias, tudo são lições de vida que nos garantem “que a vida não acaba, apenas se transforma” (2 Cor 5, 1).

3. Celebrou-se no ano passado o Jubileu da Misericórdia. Afirmou-se que a Misericórdia de Deus é maior do que todo o pecado humano. Disse-o o Papa em diversas cartas apostólicas, comentaram-no os teólogos em inúmeros artigos, anunciaram-no os Bispos e os Sacerdotes sempre que se referiram ao Jubileu. A Misericórdia de Deus é amor, é ternura, é compreensão, mas é sobretudo perdão. Por isso tem razão o Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, quando diz que “Deus não recusa a salvação àqueles que ignorando sem culpa, o Evangelho de Cristo e a Sua Igreja, procuram contudo a Deus com sincero coração e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da sua consciência; também eles podem alcançar a vida eterna” (LG 16). É nesta concepção de salvação, marcada pela infinita misericórdia de Deus que nós, cristãos, rezamos pelos que partem, mas simultaneamente os imitamos nos valores e virtudes que praticaram. De facto, mesmo ao nível do tempo, a vida não acaba: apenas se transforma.

4. Os quatro vultos que se recordam hoje por razões diferentes passaram pela nossa comunidade. Por isso não os esquecemos, estão presentes na nossa oração e nas lições de vida que nos deixaram.

Pe. Vítor Feytor Pinto –  Prior