1. A vida é, para o ser humano, o primeiro de todos os valores. Para muitos a vida é uma dádiva da natureza, mas para os cristãos a vida é um maravilhoso dom de Deus. Todos os seres humanos participam na vida respeitando-a, defendendo-a e promovendo-a. Todas as ciências têm no seu universo uma preocupação pela vida. A medicina existe por causa da vida quer prevenindo os seus riscos quer superando as suas dificuldades, quer mesmo dando-lhe a máxima qualidade possível. O direito está atento à vida para que cada ser humano seja tratado com a justiça que lhe garanta a dignidade e a liberdade. A educação tem como grande objectivo a formação integral da pessoa humana através da assimilação sistemática e crítica da cultura, o que só é possível com a atenção suficiente à vida de cada um. A literatura e a arte descrevem a vida humana na sua beleza mais profunda. Através dos livros, da poesia, da música, da pintura e da escultura consegue-se revelar que a vida humana tem muito de espiritual, devendo por isso ser sempre projectada para a realização dos valores que fazem o ser humano feliz. Quantas outras coisas se poderiam dizer da vida humana. Pergunta-se, porém, afinal o que é a vida? Dom da natureza ou dom de Deus é sempre um complexo bio-psico-social-cultural, espiritual e até sobrenatural.
-A vida humana tem uma componente biológica absolutamente extraordinária. Cada organismo do corpo humano tem uma riqueza que não se compreenderá sem a intervenção do primeiro princípio. Mesmo que se afirme a riqueza da natureza, a origem da vida é sempre um dom de Deus, seja qual for o nome que lhe possa ser dado.
-A vida humana está organizada também na vertente afectiva e psicológica. A marca da inteligência, da vontade, da liberdade e do amor são imprescindíveis para a felicidade de cada um. Não basta a cultura do corpo, é indispensável a participação do espírito em todos os aspectos da vida. Talvez por isso há para quem o verdadeiro amor consiste em fazer os outros felizes.
-A vida humana realiza-se plenamente na dimensão social envolvendo logicamente a cultura de cada povo. O ser humano nunca está sozinho, está sempre em relação, daí que se possam privilegiar os outros contribuindo para a felicidade de cada um. A relação humana em cada cultura vai construindo uma sociedade em que todos podem estar perto numa entreajuda constante.
-A vida humana não pode esquecer a dimensão espiritual e religiosa. Através destas duas perspectivas consegue-se a superação dos individualismos e a aproximação ao transcendente. Cada um sente não ser possível uma relação humana sem a verdade, a justiça, a liberdade e o amor. Apercebese, porém, que a felicidade não se consegue sem o transcendente, sem o encontro com Deus em que se acredite e de quem se recebem linhas de esforço para o bem comum. É por isso que o sobrenatural faz parte da vida humana e nunca poderá ser desprezado.
Considerando a vida humana nesta extraordinária complexidade, facilmente se compreende que é o “dom de Deus” que urge ter o primeiro lugar em todas as situações vividas. O homem e a mulher ao longo de todo o caminho que venham a percorrer são sempre colaboradores de Deus, na realização da vida, na sua defesa, promoção e na plenitude de que se é capaz.
2. Ao longo dos séculos, a humanidade teve sempre o cuidado de garantir à vida humana os valores éticos fundamentais. Aliás, o primeiro de todos os direitos foi sempre o direito à vida. Já o afirmava o Código de Hamurabi, escrito na pedra, 2500 anos a.C.. Reafirma-o a cultura grega, que teve a coragem de consagrar odever da vida no extraordinário juramento de Hipócrates, 500 anos a.C.. Por outro lado, todas as religiões antigas procuravam salvaguardar a vida, contrariando a Pena de Talião que reclamava “olho por olho e dente por dente”. O judaísmo não teve medo de dizer, expressamente, nos preceitos do Sinai, na Lei Mosaica: não matarás. Perante o sofrimento que o não respeito pela vida foi trazendo a inúmeras guerras e violências, a maior parte dos países sentiram a urgência de proclamar a Carta das Nações. Nela afirma-se como primeiro direito e dever o respeito pela vida, a sua defesa e a sua promoção. Na Carta Universal dos Direitos Humanos reza-se assim: “Todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança da sua pessoa”. Da mesma maneira até hoje, as diversas constituições portuguesas dos vários regimes consagraram sempre o valor da vida. A constituição actual afirma isso no artigo 24º: “1- A vida humana é inviolável; 2- Em caso algum haverá pena de morte.” Com que orgulho as gerações passadas se sentiram bem com o facto de Portugal ser o primeiro país do mundo a abolir a pena de morte. É que a vida, como primeiro dom, jamais pode ser sacrificada. Infelizmente, nas sociedades contemporâneas, o culto de uma certa modernidade leva a sacrificar valores que as nações consagraram em 1948 com a defesa intransigente dos Direitos Humanos. Sem o direito à vida a proclamação dos outros direitos não tem sentido, porque é na defesa da vida que eles se alicerçam. É indiscutível e universalmente aceite que a vida de cada ser humano é única, inviolável e indisponível.
-A vida de cada pessoa é única com o mesmo DNA e o mesmo genoma ao longo de toda a vida. Ninguém tem o direito de destruir o ser humano. Nem no seu processo de nascimento, nem no seu desenvolvimento pessoal e social, nem na etapa final da existência. Cada pessoa tem o valor único. Não há motivos pelos quais possa ser sacrificada.
-Neste contexto a vida humana é sempre inviolável qualquer que seja o motivo que se apresente. Nem a idade avançada, nem a realidade do sofrimento que pode ser sempre aliviado, nem a sobrecarga de natureza económica, ou o peso afectivo, podem justificar a precipitação da morte.
-A vida humana é ainda indisponível. Nem os Estados podem dispor dela legitimando a pena de morte, nem os políticos podem sacrificá-la por interesses ideológicos, nem os clínicos podem contrariar a sua missão, dispondo da vida dos seus doentes, nem os familiares podem aceitar que a precipitação da morte seja alívio para aqueles que estão na etapa final da vida. A vida é mesmo indisponível. Nem o doente pode pedir o suicídio assistido, porque a sua vida tem uma dimensão social. Por isso mesmo interromper o seu normal itinerário, apenas por um estranho bem pessoal, acaba por ser um inaceitável acto de egoísmo.
Com a consciência do valor da vida é sempre inaceitável precipitar a morte quer seja pela interrupção voluntária da gravidez, pela pena de morte, a eutanásia e o suicídio assistido e tantas outras formas de provocar a morte a seres humanos que têm direito a viver.
3. Entre 13 e 20 de Maio de 2018, por vontade do Papa Francisco celebra-se em todo o mundo a “Semana da Vida”. Francisco, Papa, numa linguagem muito simples, diz apenas: “Parece que hoje a criatura humana se encontra numa particular passagem da sua história que, num contexto inédito se depara com as antigas e sempre novas interrogações sobre o sentido da vida humana, acerca da sua origem e do seu destino”. É urgente contrariar a cultura da morte, que parece ser constante na sociedade actual. Como cristãos, sabendo também que a vida é um dom de Deus, não podemos deixar de proclamar a cultura da vida. De facto, é por se ter perdido o sentido da vida que inúmeros responsáveis sacrificam o valor da vida afirmando apenas a autonomia duma falsa liberdade para consagrar o direito à eutanásia, isto é, a afirmação legal de pôr fim à vida de doentes terminais, sobretudo pela dificuldade em cuidá-los e os encargos a suportar, tanto pela família como pelo Estado, que daí advêm. Utiliza-se uma falsa noção do sofrimento para legitimar tais atitudes. Todo o doente terminal tem direito ao alívio do sofrimento, o que é possível pelos cuidados paliativos. A sociedade, longe de facilitar a morte de quem sofre, deve antes proporcionar o suficiente bem-estar, também afectivo, àqueles que estão perto de alcançar o fim. Reconhecendo o sentido da vida, e o valor da vida como primeiro direito, a única atitude a ter, como cidadãos responsáveis, é saber dizer-se: não. A liberdade que uma certa visão de autonomia proclama não pode ser geradora da morte. Na defesa da vida e na sua promoção não está nunca um problema religioso, está sobretudo um problema social e ético que reclama a dignidade de cada vida, começando esta pelo seu direito fundamental: viver.
P. Vítor Feytor Pinto