APRESENTAÇÃO DO LIVRO «DIÁRIO DE UMA QUARENTENA, DE NÚRIA FRAU

Em Março deste ano, vimo-nos todos transportados para uma daquelas cenas de filme apocalíptico em que a humanidade tem de permanecer fechada em casa, escondida, ameaçada por uma catástrofe biológica.

Tirando o facto de não ser um filme, tudo o resto parecia mesmo saído de um roteiro cinematográfico de um daqueles filmes com uma produção estupenda e locais de filmagens espalhados por todo o mundo. E os actores éramos nós! Todos nós!

Quando nos apercebemos que não era ficção, que não era uma coisa só do outro lado do mundo (o que nos deixaria descansados… deixaria??), estávamos praticamente indefesos. O contágio foi avançando discreto e eficaz até se tornar digno de respeito. O que parecia problema dos outros começou a ser um problema de todos: começámos a ter conhecidos, amigos e familiares infectados. Fecharam escolas, universidades, cinemas, teatros… adiaram-se concertos, encontros, casamentos e baptizados… Sepultámos os nossos em cemitérios desertos, com frieza e distanciamento quando tudo o que precisávamos era o contrário disso. E suspendemos a celebração da Missa e todos os encontros comunitários, absolutamente vitais para relação com Jesus.

Nos filmes, os cenários apocalípticos são desertos de gente e as câmaras passeiam-nos entre escombros do que tinham sido as grandes cidades. Na nossa realidade, os espaços públicos ficaram vazios e intactos, como se tivéssemos suspendido o correr do tempo e tudo permanecesse sempre igual. Mas o tempo não parou.

O Mundo tremeu. O medo adensou-se, a ansiedade escalou e, paulatinamente, esbateu-se a esperança de muitos e carregou-se de tons mais graves a sombra da depressão.

Foi absolutamente brutal o facto de milhares de pessoas terem ficado durante meses sem contacto humano próximo, sem manifestações de carinho e afecto, sem os dinamismos relacionais e comunitários que nos ajudam a ser quem somos.

Não tenho dúvidas de que, para alguns mais vacilantes na sua caminhada de fé, mais precisados de acompanhamento e ajuda para manter a constância do caminho, esta pandemia poderia significar um ponto final no percurso com Deus.  

É indiscritível o que nos chegou (e chega!) pela televisão: imagens que nos custa descrever, o imperativo das decisões que nenhum homem deveria ter de tomar…

É nestes momentos de aparente sem-sentido e escuridão, que se torna indispensável o surgir de uma luz que corte com a treva e ilumine, ainda que tenuemente, o nosso olhar sobre a realidade. Sem luz, não somos capazes de ver o caminho.

Este filme não foi feito apenas de cenas tristes. Há sempre pessoas que se levantam de entre a multidão e que se recusam a deixar-se vencer pelo medo, a ficar de braços cruzados, quando percebem que o momento pede testemunhas convictas e intrépidas.

Na saúde, no apoio social e psicológico; nas iniciativas informais de boa vizinhança; e em tantos outros campos, fomos assistindo a um forte desejo de responder ao desafio que tínhamos em mãos. Às respostas institucionais e profissionais, somaram-se tantas e tantas outras levadas a cabo por pessoas movidas pelo seu desejo de ajudar o próximo, de cuidar dos outros, de fazer qualquer coisa que ajudasse a vencer o nosso sentimento de impotência e o medo. Confesso que este movimento me encheu da esperança de que sairíamos reforçados, mais maduros, elevados como comunidade humana de toda esta situação. Ainda mantenho essa esperança!

Também a Igreja respondeu à altura, com generosidade, beleza e em tom profético. Multiplicaram-se as iniciativas através dos meios digitais que visavam acompanhar os cristãos e ajudar a uma leitura crente da realidade. Estas iniciativas permitiram diminuir a dor da privação da Eucaristia e dos encontros comunitários. Aqui mesmo, na Paróquia, publicámos diariamente entre os dias 13 de Março e 29 de Maio a «Proposta de Oração em tempo de quarentena a partir dos textos da Missa», e desdobrámo-nos em iniciativas online: era preciso levar Jesus à presença de todos. Celebrámos a Páscoa numa Igreja vazia, mas repleta do desejo de todos os que nos acompanharam online como se estivessem presentes. Todos os grupos se multiplicaram em esforços para chegar a todos, para que ninguém ficasse desacompanhado. E esta variedade de iniciativas alargou-se a toda a Igreja. Foram inúmeras as paróquias, movimentos e grupos que encontraram formas de acompanhamento de que todos pudemos beneficiar. A criatividade e a generosidade foram ímpares!

Recordo com muita gratidão a presença do Papa Francisco na Praça de São Pedro absolutamente deserta. Era nitidamente um alter Christus carregando o sofrimento do mundo, apresentando-o nas mãos misericordiosas do Pai. Nunca esqueceremos a beleza densa desse momento. Um espaço vazio, mas repleto da esperança de todos os que se uniram ao Papa em tantas partes do mundo.

Tal como nunca esqueceremos o primeiro 13 de Maio, desde 1917, em que no Santuário de Fátima não teve peregrinos. Não os teve presencialmente, porque os portugueses estiveram bem próximos de Nossa Senhora, na nobreza e sensibilidade com que o Cardeal António Marto nos representou, nessa «peregrinação em estado puro», nessa «peregrinação do coração», expressões que ele próprio usou e de que a Núria fez eco na oração que propôs.

A Igreja esteve à altura! Soube responder responsavelmente aos desafios, não buscando apenas uma manutenção dos seus supostos direitos, nem jogos de poderes inférteis e danosos. Soube pôr-se ao lado dos esforços que todos estavam a fazer; soube colaborar com as autoridades nas várias frentes; soube fazer jejum e renúncia de coisas que lhe são muito queridas. E não deixou de ser profética: de ler a realidade à luz da Palavra, à Luz do Mistério Pascal de Jesus; nem desistiu de ser anunciadora da Vida; de ser a Boa Samaritana a ir ao encontro de cada pessoa fragilizada física, psicológica ou espiritualmente. Assim, somos Igreja e somos humanidade! Empenhados mais em salvar a vida, do que em impedi-la ou terminá-la. Assim somos, realmente, sacramento de Cristo no mundo.

O Diário de uma quarentena, que a Núria foi publicando entre os dias 24 de Março e 29 de Maio, é uma pièce de résistance, entre muitas luzes que se acenderam para nós no firmamento eclesial.

Apresentar uma obra com o título do livro que apresentamos hoje, é testemunhar a responsabilidade e a generosidade, assumidas a cada dia, por alguém que tem a missão de cuidar e acompanhar humana e espiritualmente, aqueles que lhe estão confiados. E este Diário testemunha-nos que, quando o tempo pedia coragem e intrepidez, a Núria soube estar à altura. Como ela mesma dizia na oração que propôs para o dia 26 de Março, «é necessário parar e rezar, porque hoje cada um de nós, o mundo inteiro, somos este homem doente chamado Lázaro».

Nunca teremos a perfeita noção do impacto que estes escritos tiveram na vida de cada um dos que os leram. Nunca saberemos todas as tempestades apaziguadas ou as paralisias curadas. O que sabemos é que o Amor é criativo e que, neste Diário, encontrou um caminho para se realizar.

Como subtítulo para o livro escolheram uma expressão cheia de sentido: «A vida surpreende-nos». É verdade, surpreendeu-nos com esta pandemia! Mas seria ficar a meio do caminho se parássemos aqui, porque a vida nos surpreende a cada com a existência a acontecer, com o amor a fazer-se gesto, com a amizade a construir-se, com a busca da justiça e da paz, com tanto, tanto, que de belo somos capazes de realizar. A vida é tão bela, e é precisamente isso que nos surpreende!

Não me surpreende, nem nunca me surpreenderá que haja mulheres e homens que, como a Núria abrem o coração a Deus e deixam que desse coração pleno de amor transbordem os dons que Deus quer oferecer a todos. Não me surpreende que haja mulheres e homens dispostos a ser instrumentos de uma obra que não é apenas sua. Não me surpreende que haja mulheres e homens de Deus, a viver a vida num mundo tocado por Deus, que sabem chorar com os que choram e alegrar-se com os que se alegram. Não me surpreende que haja mulheres e homens capazes de amar o mundo, só porque o mundo é o campo onde se ama a Deus.

Obrigado Núria e obrigado a todos!

 

Campo Grande, 18 de Outubro de 2020

Padre Hugo Gonçalves