1. Na linguagem popular diz-se com frequência que “um santo triste é um triste santo”. Não é possível ser cristão sem respeitar a alegria que vem da Ressurreição. Por isso, as grandes figuras da Igreja revelaram-se sempre com um profundo sentido de humor. Contam-se imensas histórias do Bom Papa João (S. João XXIII) que tirava partido de tudo para, com uma graça, aliviar os ambientes às vezes pesados. O Papa João Paulo II não perdia uma oportunidade para converter uma situação difícil num momento de descontracção. Conta-se que numa reunião dos Bispos portugueses com o Papa, ao cumprimentar o Bispo das Forças Armadas, fez “uma continência”, o que provocou risos em todos os que estavam presentes. O Papa Francisco, num encontro recente com milhares de crianças, brincou com a inteligência dos papas, afirmando logo que todos se tinham enganado ao escolhê-lo porque ele não era assim tão inteligente. Umas vezes foram “graças espirituais”, outras “acontecimentos inesperados”, outras ainda “simples comentários”, mas, em todos estes grandes homens da Igreja, o sentido de humor faz parte da sua vida. A Igreja, em toda a sua história, sempre teve em conta a importância do humor, até mesmo para aliviar os tempos de angústia que muitas vezes se está obrigado a viver. Vem tudo isto a propósito dos dias que precedem, no calendário litúrgico, a entrada na Quaresma. Estas sete semanas antes da Páscoa são vividas na prática do jejum, da oração e da esmola. São tempo de penitência e de conversão. Era necessário consagrar alguns dias antes para cultivar a descontracção, a alegria, até mesmo a diversão, para ser mais fácil a entrada na Quaresma. Depois de três dias de festa, com algum ruído à mistura, com a Quarta-Feira de Cinzas chega-se ao tempo de reflexão para a mudança de vida. A liturgia dirá mesmo: “lembra-te ó homem que és pó e que em pó te hás-de tornar”. Este sentido de humor tem para os cristãos um tempo próprio: é o Carnaval, que desde o século IV precede a entrada no tempo santo da Quaresma.

2. O Carnaval é uma festa cristã que ao longo dos séculos pode ter sido desvirtuado. Originalmente, porém, tinha o sentido de preparação para o tempo de penitência que caracteriza a Quaresma. Alguns exageros levaram a que se chegasse a considerar o Carnaval como fonte de pecado. Nos séculos XVIII e XIX, com o jansenismo, chegou mesmo a ser considerado “ocasião de maldade” pelo que se instituíram as “40 horas de reparação”, com a adoração ao Santíssimo, nas igrejas. Tentou-se, depois, organizar carnavais com espírito cristão. Foi assim com os carnavais de Bolonha, liderados pelo Cardeal Lercaro, e até com o carnaval de Milão, com o Cardeal Montini, depois Papa Paulo VI. Se o Carnaval tem origem cristã, poderá perguntar-se como vivê-lo hoje:

. Com as festas das crianças que se mascaram com as fantasias dos seus heróis.

. Com os encontros de jovens que se divertem num convívio de grande alegria, com as bandas, com os cantares, com os papelinhos e serpentinas, com representações e tantas outras formas de cultivar o humor, mantendo o respeito que os verdadeiros amigos sabem ter uns com os outros.

. Com os “bailes de máscaras” para, entre famílias conhecidas, as pessoas se divertirem de uma maneira saudável, seguindo um mote que a todos foi proposto.

. Com os corsos que nas cidades e nas vilas cumprem tradições ancestrais e que se organizam durante muitos meses, com um convívio amigo entre os autores de cada carro alegórico. Nestes, a crítica faz parte do humor, mas não pode comprometer o respeito pela dignidade humana.

Há muita maneira de viver o Carnaval com o maior sentido de humor, mas com uma profunda marca cristã. As histórias que se contam, as graças que se improvisam, as partidas que se pregam, as festas que se organizam, tudo pode ser vivido no maior respeito por cada um. Assim, o Carnaval é um tempo de alegria para preparar o silêncio e a austeridade da Quaresma.

3. Viver o Carnaval pode ter perspectivas diferentes, sendo apenas uma oportunidade de aproveitar o tempo disponível. Cada pessoa individualmente, cada família, cada grupo de amigos pode organizar-se para programas comuns de natureza cultural ou espiritual.

. Fazer uma viagem há muito sonhada e para a qual nunca houve o tempo e a disponibilidade necessária.

. Passar uns dias num lugar bonito, num hotel junto ao mar, num turismo rural, na casa de um amigo, na hospedaria de um mosteiro, espaços de serenidade e de paz.

. Fazer um retiro, pessoal ou em grupo, com um bom orientador, para rever a vida, verificar os pontos a melhorar e assumir ser cristão com a maior exigência.

. Simplesmente estar em família e saborear a relação de amor, no casal, nos filhos, nos netos, com um envolvimento de ternura, sempre essencial à felicidade.

Há inúmeras maneiras de passar estes dias de Carnaval. O problema está em saber escolher a melhor forma de aproveitar este tempo para, com simplicidade e alegria, preparar o coração para o tempo santo de Quaresma que vem logo depois. Antes do Concílio Vaticano II, havia uma liturgia própria para este tempo de diversão. Na linguagem popular havia o domingo magro e o domingo gordo. Na linguagem litúrgica eram os domingos da septuagésima, da sexagésima e da quinquagésima. Era quase uma preparação do Carnaval. Se hoje se vive o Carnaval apenas em três dias, para o cristão deve manter-se cada vez mais o respeito por cada pessoa por mais interessante que seja a graça conseguida. É este o espírito do Carnaval cristão: cultiva-se a alegria e faz-se humor assegurando sempre os valores cristãos, onde a dignidade do outro tem sempre o primeiro lugar. Neste espírito, quanto melhor for o nosso Carnaval, melhor será a nossa Quaresma.

Pe. Vítor Feytor Pinto – Prior