Solenidade da Ceia do Senhor – Quinta-Feira Santa – transmitida em directo
Quinta-feira Santa – este é um dia muito significativo porque, além de celebrarmos a Última Ceia de Jesus com os seus discípulos (esse momento que ficou marcado para sempre na memória deles e na memória de toda a Igreja), celebramos sobretudo esse grande dom que é a Eucaristia – o podermos continuar a celebrar o mistério pascal de Jesus na Sua Paixão, morte e ressurreição e ascensão aos céus perpetuamente, recebendo continuamente, através do sacramento da Eucaristia as graças que a entrega de Jesus ao Pai nos alcançou. E, por isso, é um mistério enorme de amor este da Eucaristia, que o Senhor nos dá a viver, nos dá a celebrar continuamente, nos dá a comungar. E pediu neste dia aos discípulos que fizessem memória daquele acontecimento: “Isto é o meu Corpo entregue por vós”; “Isto é o cálice do meu Sangue, o sangue da nova e eterna aliança”.
E, de facto, é de uma aliança que nós falamos quando falamos da Páscoa. Ainda ouvíamos no livro do Êxodo aquele momento extraordinário em que Deus, através de Moisés, marca também um momento novo na Sua relação com o povo – a libertação da escravatura do Egipto. E a descrição é precisamente de como a Páscoa devia ser celebrada. A Páscoa não é uma coisa nova a partir daquele momento da libertação do Egipto; já havia uma celebração naquela altura ligada às colheitas e às primícias dos rebanhos. Mas o que Deus faz é pegar naquele momento celebrativo que já existia para o transformar numa coisa nova em sinal desta aliança de amor que Deus celebra com o Seu povo – liberta-os do domínio dos egípcios, fá-los atravessar o Mar Vermelho, mas liberta-os também para viverem uma vida nova como povo amado pelo Senhor, chamado a ocupar agora a terra nova que o Senhor lhes quer oferecer. E é precisamente essa a Páscoa que Jesus manda os discípulos prepararem naquela noite, naquela sala de cima como também sabemos através do Evangelho. Aliás, todos os varões, homens com mais de 12-13 anos, tinham que ir a Jerusalém todos os anos, por altura da Páscoa, para aí celebrarem este momento significativo da vida do povo de Israel. E por isso Jesus dirige-se também a Jerusalém para aí celebrar a Páscoa com os discípulos.
Há uma coisa muito bonita que Jesus faz nesta noite, alterando um pouco o que era ritual judaico. Nesse ritual havia o gesto da ablução das mãos, ou seja, lavar as mãos antes de comer. E o que Jesus faz é transformar esse momento num momento novo, de tal maneira que é inesperado para os discípulos, e vemos até Pedro resistir um pouco a Jesus – é o Lava-pés (que hoje, por razões óbvias, não poderemos replicar como todos os anos). O significado deste gesto é muito importante: Jesus, o Deus do Universo, o criador de todas as coisas, baixa-se para lavar os pés a um dos seus discípulos. Esta era uma tarefa que ninguém fazia a não ser os escravos estrangeiros; era uma tarefa tão baixa que não se pediria a um judeu para a fazer. Por isso é que há uma certa apreensão da parte de Pedro: “Mas Senhor, Tu é que me vais lavar os pés?”. E Jesus insiste nesse gesto e vai fazê-lo a todos os discípulos. Mais ainda, há ali uma mensagem que Jesus quer transmitir: “Vós chamais-me Mestre e Senhor, e dizeis bem porque o sou. Ora, se Eu que sou o Mestre e Senhor vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns aos outros”. E, por isso, deixou-nos também esta missão aliada àquele mandamento novo do amor – “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”: amai-vos uns aos outros servindo-os mutuamente, gastando a vida uns pelos outros, lavando os pés uns aos outros.
Para nós este é um gesto humilhante e certamente foi o que os discípulos pensaram. E quantas vezes nós também sentimos isso – que é humilhante pormo-nos diante do outro como quem se assume num lugar inferior para o poder servir assim, com humildade, com despojamento, deitando por terra a capa que nos investe da nossa autoridade, e dispondo-nos ao serviço. Temos muita dificuldade em fazer isso. É muito bonito vermos que durante esta pandemia há muitos homens e mulheres que se dispõem a ser estes que lavam os pés aos outros. Os profissionais de saúde, os trabalhadores dos estabelecimentos comerciais que precisam de continuar a funcionar para podermos ter as coisas que precisamos consumir diariamente, mas depois todas as outras pessoas, “invisíveis”, que garantem os serviços mínimos – não as vemos mas estão lá, continuam a trabalhar para que possamos estar protegidos e termos o mínimo de qualidade de vida necessária. É tão bonito sabermos que há pessoas que, conscientes dos riscos que correm e também as suas famílias, estão disponíveis para servir a Humanidade, para se entregarem por uma causa maior.
Jesus está sempre disposto também a inclinar-se diante de nós para nos lavar os pés. Naqueles momentos do nosso orgulho, nos momentos em que nos damos demasiada importância, às nossas posições, tarefas, às nossas coisas, em que nos esquecemos que realmente importante é o Senhor e o Seu amor. E Ele, mesmo assim, inclina-se diante de nós para repor as coisas no seu devido lugar. De facto, este tempo de pandemia (e já que estamos a celebrar a Páscoa lembremo-nos disso), é também o momento para pormos as coisas no seu devido lugar. De, privados de tanta coisa, nos apercebermos que se calhar há aquelas coisas fundamentais, essenciais, das quais às vezes nos esquecemos no reboliço dos nossos dias e que agora somos obrigados a voltar a elas, a tê-las no centro da nossa vida. E depois de terminar, porque terminará esta pandemia, que saibamos guardar estas coisas grandes que aprendemos ao longo deste tempo; que saibamos guardar o essencial ao qual queremos continuar a agarrar-nos.
O sacerdócio é outra das dimensões que celebramos hoje. O sacerdócio ministerial – Presbíteros, Bispos – brota da Eucaristia, como aliás toda a Igreja. O Corpo de Cristo são os que comungam o Corpo do Senhor. E o sacerdócio ministerial é este oferecimento contínuo de Jesus, da Sua vida, da Sua entrega ao Pai, oferecendo com a Sua vida também a nossa vida. Todos os cristãos, no seu sacerdócio comum dos fiéis, são chamados a fazer isto, mas de uma maneira ainda mais significativa, os sacerdotes que o são pelo sacramento da Ordem. Diante do altar somos chamados a oferecer a nossa vida também como pão para a vida do mundo, a abdicar de tantos projectos, tantas histórias, de outros caminhos que poderiam também fazer-nos felizes, para assumir como nosso este caminho de Jesus, irmos no seguimento dos Seus passos, e continuarmos a dá-lO como alimento na Sua Palavra, mas sobretudo na Eucaristia a todo o povo que Ele ama.
É um dom muito grande, o do sacerdócio, que o Senhor faz à Igreja. Eu próprio beneficiei do convívio com muitos e santos sacerdotes, homens que eram e são sacramento vivo de Jesus no meio do mundo, pela maneira como vivem, pelo acompanhamento que fazem das pessoas, pela maneira como traduzem a Palavra de Deus em palavras que somos capazes de entender e de assumir como nossas. Homens que, pela sua entrega generosa na prática sacramental, foram e são testemunho na minha vida e ajudaram a minha vida espiritual crescer e ampliar-se. E por isso estou muito grato ao sacerdócio que o Senhor instituiu e muito grato nessas pessoas concretas que Jesus pôs no meu caminho, esses sacerdotes que não se desviaram da sua missão.
Faço votos que muito brevemente possamos estar todos aqui reunidos, nesta igreja, que agora até faz eco de tão vazia que está. Mas sei que todas estas palavras, tudo o que estamos agora aqui a viver está a fazer eco num lugar ainda mais importante, que é no coração de cada um, na família reunida em cada casa. E sei que esta Eucaristia há-de beneficiar, com as suas graças, todos aqueles que nela estão a participar nesta celebração através da internet.
Que o Senhor nos faça humildes para O recebermos na Eucaristia, para deixarmos que Ele nos lave os pés, mas sobretudo humildes para aprendermos com Ele a sermos lavadores de pés, neste mundo e nestes dias onde esses são tão necessários.
Que o serviço seja a nossa identidade primeira.
9 abril 2020