1. Em 1981 teve lugar em Lourdes o 42º Congresso Eucarístico Internacional. O tema em estudo era aliciante: “Pão partido para um mundo novo”. Ainda se sentiam os resultados da 2ª Guerra Mundial, ainda se viam nas cidades da Europa as ruínas provocadas pelos bombardeamentos, ainda se mantinha dividido o mundo, divisão esta significada pelo muro de Berlim. Havia muita gente em sofrimento. Era mesmo necessário repartir o pão, para que todos pudessem viver em segurança e com esperança no futuro. Foi neste Congresso Eucarístico Internacional, em que Portugal tinha o encargo de organizar o pavilhão da língua portuguesa, que foi convidado D. Hélder Câmara para falar sobre a Eucaristia, privilegiando a presença de Jesus na realidade do mundo. Numa longa conversa D. Hélder, o Bispo carismático dos pobres, conta uma história que com ele se passara. Numa zona perdida da sua Diocese de Olinda e Recife, houve a profanação de um sacrário para roubar os vasos sagrados. As hóstias consagradas foram espalhadas no lodo do pântano. O Bispo foi, então, com todos os seus fiéis recolher as partículas enlameadas e trazendo-as para a Igreja. Ali, diante de todos fez uma pequena reflexão, dizendo: fomos todos recuperar a Eucaristia que sabemos ser presença do Senhor, lançado na lama do pântano; com que carinho o fizemos; mas quantas vezes o Senhor está presente, também enlameado, em milhares de mendigos abandonados em plena noite, ao frio, tendo fome ao longo do dia, sofrendo a perda do futuro e sem horizontes para viver. Em todos esses, Jesus está presente como na Eucaristia e não demos por Ele. Mas cada pobre era a presença viva do Senhor. Foi uma grande lição, a do Bispo Hélder Câmara. Nesta Quaresma, todos nós podemos também perguntar “Onde estavas, Senhor, que Te não vimos?”
2. Durante este Ano Jubilar da Misericórdia é relativamente fácil saber o que é a misericórdia de Deus para connosco, qual a sua dimensão de amor, a sua ternura constante na nossa vida. O difícil começa a ser, depois, o descobrir como ser “misericordiosos como o Pai”. A misericórdia que recebemos de Deus, com o seu perdão total, deve ser distribuída por todos aqueles com quem nos cruzamos no caminho. O problema será depois saber “onde estavas, Senhor, que Te não vimos?”, qual o lugar onde o Senhor está, para irmos ao seu encontro. Jesus no Evangelho de Mateus, deu a resposta: “Sempre que o fizeste ao mais pequenino dos teus irmãos, era a mim mesmo que o fazias”. É preciso saber onde está o Senhor para ir dar-lhe de comer e de beber, ir visitá-lo porque está preso ou enfermo, abrigá-lo porque está nu ou é peregrino. Onde está hoje o Senhor? O Senhor poderá responder:
. Estou em muitos lugares onde as pessoas estão marcadas pelo sofrimento: os hospitais e clínicas com os seus doentes; as prisões com homens e mulheres culpados e, muitas vezes, inocentes; nos lares e residências de idosos frequentemente abandonados até pelos familiares; nos centros de acolhimento de pessoas diferentes a quem uma deficiência marcou.
. Estou nas periferias, onde ninguém quer demorar-se, para não correr riscos: às portas do metropolitano com pobres a pedir esmola; no vão das escadas, onde de noite alguns conseguem dormir; debaixo das pontes e dos viadutos, lugar para os sem abrigo até no frio do Inverno; junto aos semáforos, onde alguns tentam receber um euro por uma revista ou um pacote de pensos rápidos.
. Estou nos centros de acolhimento, onde se amontoam desempregados, refugiados ou emigrantes, todos à procura de uma oportunidade para recomeçar a vida, depois de um tempo de crise; ou nos centros sociais, onde ainda poderão conseguir ajuda para pagar a renda da casa, a água, o gás ou a luz.
. Estou nos bairros antigos onde pessoas de idade experimentam a solidão mais violenta, o silêncio que atordoa e os contributos dos vizinhos, que muitas vezes recusam por vergonha. A própria casa, com sofás envelhecidos, torna-se um lugar de angústia pois é prova do estatuto social que se perdeu.
Os justos perguntam: “onde estavas tu, Senhor, que te não vimos?” E Jesus estava bem vivo em todos aqueles homens e mulheres em sofrimento que esperavam receber dos outros, pela prática das obras de misericórdia, o olhar, a palavra, o gesto, a dádiva que poderia dar sentido à vida.
3. A palavra mais bela desta página do Evangelho, no capítulo 25 de Mateus, vem a seguir. Perante a pergunta: “onde estavas, Senhor, que te não vimos?”, Jesus respondeu “o que fizeste ao mais pequenino dos teus irmãos foi a mim que o fizeste (Mt 25, 40). Jesus está presente em cada um daqueles homens e mulheres marginalizados, abandonados no caminho, sem resposta para os problemas urgentes que os perseguem. É certo que Jesus está presente na Eucaristia e os cristãos acreditam e comungam. Jesus também está presente na comunidade cristã, a Igreja, porque unidos em seu nome, os cristãos vivem em Igreja. O Senhor Jesus está presente no sacerdócio do Papa, dos Bispos e dos Presbíteros, e os cristãos amam neles a Sua presença viva. Jesus Cristo está também presente na Palavra que se proclama e se escuta e os cristãos vivem da Palavra. Mas Jesus está também presente no pobre e no homem e na mulher fragilizados, na pessoa que caiu doente ou está prisioneira. É neste outro que os cristãos reconhecem Jesus na sua permanente encarnação. Perguntar-se-á, então, como ir ao encontro de Jesus presente no próximo. A resposta pode ser pontual, tentando resolver uma situação difícil de pessoas que se cruzam connosco no caminho. Pode ser também programada, mas de forma individual, tomando a nosso cargo uma criança meio abandonada, um jovem com dificuldades nos estudos, uma família em situação económico-social dramática. O melhor, porém, neste encontro com Jesus, bem presente no pobre e no que sofre, está na intervenção social organizada. Neste caso, a atitude do cristão não consiste em resolver um problema pontual que vai repetir-se. A resposta cristã estará no acompanhamento da pessoa em dificuldade até à sua promoção humana, tornando-a capaz de ser autónoma e de construir a própria felicidade. É desta acção social, a expressão de fé, que o Papa Francisco fala na Evangelii Gaudium. Na comunidade paroquial, a acção junto dos mais pobres está confiada ao Centro Social Paroquial do Campo Grande. Todos os cristãos da comunidade deverão colaborar com esta acção organizada. Para isso, nada melhor do que seguir as atitudes propostas pela parábola do Bom Samaritano.
. Ver as pessoas que estão em crise e torná-las presentes nas preocupações da comunidade paroquial.
. Aproximar-se das pessoas que estão em situações mais complicadas e é na Paróquia que põem a sua esperança.
. Cuidar destas pessoas com todas as capacidades que, através do Centro Social, a Paróquia pode ter.
. Fazer seu o problema de quantos estão em sofrimento e criar pontes com as instituições que podem acolhê-los na fase crítica
. Finalmente, não os abandonar e continuar a apoiá-los até que consigam a suficiente autonomia.
Se ao Estado compete dar apoios sociais programados no Orçamento de Estado, com os salários justos, as pensões suficientes, os abonos indispensáveis, as isenções necessárias, à comunidade cristã pertence ir mais longe, propondo respostas em projectos de futuro de quantos, no seu sofrimento, confiam na caridade, a atitude fundamental dos cristãos.
4. Neste Ano do Jubileu da Misericórdia, perante os problemas vividos por tantas pessoas em sofrimento, para além de tentar resolvê-los, em oração todos podemos dizer: “faz-nos, Senhor, ser misericordiosos como o Pai”.
Pe. Vítor Feytor Pinto - Prior