HOMÍLIAS do Pe. João Resina Rodrigues (1930-2010)
II DOMINGO DO TEMPO COMUM
III DOMINGO DO TEMPO COMUM
V DOMINGO DO TEMPO COMUM
VI DOMINGO DO TEMPO COMUM
II DOMINGO DA QUARESMA
III DOMINGO DA QUARESMA
Depois do tempo do Natal, entramos no tempo comum. Até ao início do tempo da Quaresma, a liturgia vai acompanhar, a passos largos, os primeiros meses da vida pública de Jesus. O 1º Domingo contava o baptismo no Jordão, no texto de S. Mateus; este 2º Domingo volta ao tema, lendo o Evangelho de S. João.
Há no Novo Testamento indícios de que, após a morte de João Baptista, alguns dos seus discípulos passaram a seguir Jesus; mas outros continuaram à espera de um Messias que se apresentasse revestido de glória e de poder. Este segundo grupo terá continuado até fins do séc. I. A preocupação dos Apóstolos, e nomeadamente de S. João, é mostrar que este grupo se afasta não apenas de Jesus, mas também das próprias palavras do Baptista.
“No dia seguinte ao baptismo de Jesus, vendo-O caminhar na sua direcção, João exclamou: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. É Aquele de quem eu disse: depois de mim vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim. (…). Eu vi o Espírito que descia do Céu como uma pomba e permanecia sobre Ele. E eu não o conhecia, mas quem me enviou a baptizar com água é que me disse: ´Aquele sobre quem vires descer o Espírito e pousar sobre Ele, é o que baptiza no Espírito Santo´. Ora eu vi, e dou testemunho de que este é o Filho de Deus.»” (Jo 1,29-34).
Tão importante como a declaração de que viu o Espírito Santo descer sobre Jesus é o nome que Lhe dá: o “Cordeiro de Deus”. O cordeiro pode ser símbolo da humildade e da mansidão, não pode ser símbolo nem do poder nem da glória. O Profeta Isaías II falara de um misterioso Servidor que “tomou sobre si as nossas doenças, carregou as nossas dores, (…) foi ferido por causa dos nosso crimes, esmagado por causa das nossas iniquidades, (…) maltratado como um cordeiro que é levado ao matadouro.” (Is 53,4-7). O Evangelho de S. João sublinhará que Jesus morre na cruz na hora em que, no Templo, se imolavam os cordeiros para as ceias pascais. De resto, já o Livro do Êxodo associava a morte dos cordeiros da Páscoa à salvação do povo judeu. (Ex 12,21-28).
Para os primeiros cristãos, que se interrogavam sobre o porquê da morte do Senhor, estes textos foram uma grande luz. O projecto do Pai não foi enviar ao mundo um lugar-tenente do seu poder, foi enviar-nos o Filho, que nos amou “até ao fim” (Jo 13,1).O quarto Evangelho e a liturgia deste Domingo sugerem que João Baptista, que começara por anunciar um Messias glorioso, acabou por entrever esta luz.
São quatro os oráculos de Isaías II a respeito do Servidor de Deus (42,1-9; 49,1-13; 50,4-9; 52,13-53,12). A primeira Leitura é o segundo destes oráculos; fala do Servo fiel e da sua glorificação pelo Pai.
A segunda leitura é o início da I Epístola aos Coríntios. Pensa-se que terá sido escrita pelo ano 57, vinte e sete anos após a ressurreição do Senhor. Corinto era na Antiguidade uma cidade de costumes muito livres. A pregação de S. Paulo provoca numerosas conversões: mas há os que se mantêm fiéis a todo o transe e aqueles que, uma ou outra vez, se deixam enredar nas malhas do passado. S. Paulo intervém, explica, dá conselhos. Com firme serenidade, ou serena firmeza. Recorda que não está a agir em nome próprio, foi chamado por Jesus para ser apóstolo, como eles foram chamados por Jesus para serem cristãos. O tema do chamamento, ou da vocação, tem raízes bíblicas profundas. Por outro lado, não ignoremos que, na boca e na mente de “directores espirituais” menos avisados, causou estragos na Igreja.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
III DOMINGO DO TEMPO COMUM
A seguir ao baptismo no Jordão, Jesus retira-se para o deserto da Judeia, onde reza, jejua e enfrenta as tentações do demónio. Depois, regressa à sua terra, a Galileia. Não se demora em Nazaré e vai morar em Cafarnaum, na margem noroeste do “mar” da Galileia (o lago de Genesaré, que tem 40 km de comprimento e 20 de largura). Cafarnaum é uma vila de pescadores e agricultores. Como está perto da fronteira e passa por ela “o caminho do mar”, a estrada que do Egipto conduz à Mesopotâmia, tem uma alfândega, onde trabalham publicanos.
No séc. VIII a.C., a Assíria tinha-se apoderado desta região. Logo a seguir, Isaías anuncia que “no futuro, o Senhor cobrirá de glória o caminho do mar, a Galileia dos gentios; o povo que andava nas trevas verá uma grande luz…” (Is 8,23–9,3, primeira leitura). S. Mateus interpreta Isaías: a grande luz de que ele falava seria a pregação de Jesus.
“Caminhando na praia, Jesus viu dois irmãos: Simão chamado Pedro e seu irmão André, que lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. Disse-lhes: «Vinde comigo, e Eu farei de vós pescadores de homens.» E eles deixaram as redes e seguiram-no. Mais adiante, viu outros dois irmãos: Tiago e seu irmão João, os quais, com seu pai Zebedeu consertavam as redes, dentro do barco. Chamou-os, e eles, deixando o barco e o pai, seguiram-no. Depois, começou a percorrer toda a Galileia, ensinando nas sinagogas, proclamando o Evangelho do Reino e curando todas as doenças e enfermidades entre o povo.” (Mt 4, 12-23, evangelho desta missa).
A segunda leitura é tirada do 1º Capítulo da I Epístola aos Coríntios. Corinto era uma cidade conhecida pela liberdade de costumes dos seus habitantes. S. Paulo atreve-se a anunciar aqui Jesus Cristo e consegue formar uma comunidade. Aí permanece ano e meio, entre os anos 50 e 52. Mas os coríntios são difíceis. Depois da partida de Paulo, começam a formar capelinhas. Há os rigoristas, que vêem pecado em tudo, e os que começam a viver como as outras pessoas da cidade. Desentendem-se na doutrina. Informado do que está a acontecer, S. Paulo escreve-lhes várias cartas, exortando-os a que não façam divisões e explicando com mais vagar o que já lhes tinha ensinado. (Parece que as actuais duas Epístolas aos Coríntios resultam da junção de algumas destas cartas).
O problema da unidade acompanha a vida da Igreja. Na Última Ceia, Jesus pediu ao Pai por todos os que haviam de acreditar: “que todos sejam um, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti.” (Jo 17,20-23). Infelizmente, além das pequenas divisões e defecções, houve a grande cisão entre a Igreja Católica e as Igrejas Ortodoxas, consumada no séc. XI, e a crise da Reforma, desencadeada no séc. XVI. Durante séculos, católicos, ortodoxos e protestantes acusaram-se mutuamente de infidelidades à doutrina de Jesus e de cedências aos interesses do mundo. O séc. XX foi um tempo de reaproximação. Os teólogos aplanaram dificuldades doutrinais, as autoridades dialogaram, os cristãos das várias confissões saíram da atitude da condenação e começaram a desejar a unidade com sinceridade e empenho. Entre os dias 18 e 25 de Janeiro de cada ano, todas as Igrejas celebram o oitavário da unidade: tempo de oração e reflexão sobre este problema urgente.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
V DOMINGO DO TEMPO COMUM
Em 587 a.C., Nabucodonosor destrói Jerusalém e deporta os sobreviventes para a Babilónia. Em 538 a.C., Ciro conquista a Babilónia e autoriza o regresso dos judeus e a reconstrução de Jerusalém.
O regresso faz-se na alegria. Mas o entusiasmo inicial em breve esmorecerá. O ano era de seca e os campos estavam invadidos por ervas daninhas. As casas destruídas. Os que no exílio tinham comerciado e enriquecido começam a comprar todas as propriedades. Cresce o número dos pobres e sem abrigo. As autoridades decidem invocar o socorro de Deus: multiplicam as cerimónias religiosas e os dias de jejum.
O texto da primeira Leitura foi escrito nestes anos por um profeta desconhecido, e agregado ao Livro de Isaías. O profeta não contesta o valor da oração e da penitência; mas pensa que a oração e o jejum só comovem Deus se cada um for generoso para com o seu próximo. “Os homens começam a dizer a Deus: «Para quê jejuar, se Vós não fazeis caso? Para quê humilhar-nos, se não prestais atenção? É porque no dia do vosso jejum só cuidais dos vossos negócios, e oprimis todos os vossos empregados. O jejum que me agrada é este: quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com o faminto, dar pousada aos pobres sem abrigo, levar roupa ao que não tem que vestir e não voltar as costas ao teu semelhante. Então a tua luz despontará como a aurora, então, se chamares, o Senhor responderá.»” (Is 58, 3-8). Como vemos, é uma palavra corajosa, que será confirmada pela pregação de Jesus. Infelizmente, ora nos esquecemos de que é preciso rezar, ora ignoramos que a oração tem de brotar de uma vida verdadeira, na comunhão com Deus e com os homens.
O salmo (Sl 111(112)) deve ter sido composto na mesma época e tem uma doutrina parecida: “Brilha, como luz nas trevas, o homem misericordioso, compassivo e justo… Reparte com largueza pelos pobres, a sua generosidade permanece para sempre.” O Salmo 110 (111) falava da generosidade de Deus, este fala da generosidade do homem. A generosidade do homem não deve surgir do medo dos castigos de Deus, deve resultar da progressiva identificação do homem com o seu Senhor.
No texto da segunda Leitura, S. Paulo afirma que o cristianismo não tem comum medida com a sabedoria deste mundo, e que é portanto vão querer anunciar Cristo com um discurso elegante e sábio. “Pensei que, entre vós, não devia saber senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado… A minha linguagem e a minha pregação não se basearam na linguagem da sabedoria humana… para que a vossa fé não se fundasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus.” (1Cor 2, 1-5). Claro que a questão é difícil, e não fica resolvida em duas penadas. O pregador tem de ler e meditar a Escritura, encontra por vezes caminhos naquilo que outros já disseram. O que não pode esquecer é que a fé, apoiada ou contrariada pelas atitudes e pela palavra dos homens, é em última análise acolhimento da Palavra de Deus, tornado possível pelo dom de Deus. Um discurso “sábio” pode ser um ecrã entre Deus e o homem que O procura.
O Evangelho é tirado do Sermão da Montanha (Mt 5, 13-16). Jesus conhece os nossos defeitos e limitações, e, mesmo assim, conta connosco. Espera que a nossa comunidade seja como a luz que brilha, como uma aldeia situada no alto do monte e se vê de toda a parte, como o sal ainda não corrompido que dá gosto e preserva da corrupção. Foi uma aposta cheia de riscos. Às vezes, temos escondido Deus em vez de O mostrar, temos corrompido os homens em vez de os preservar da corrupção. Mas tem havido, e continuará a haver, homens e mulheres como S. Francisco de Assis, S. Vicente de Paulo, S. João de Deus, Santa Clara, Edith Stein e Madre Teresa de Calcutá. Estes são sinais que ninguém apagará.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
VI DOMINGO DO TEMPO COMUM
Ao longo da História da Cultura apareceram vozes a pretender que o bem e o mal é simplesmente aquilo que Deus quer que nós façamos ou deixemos de fazer. Algumas destas vozes inspiraram-se na ideia de que Deus é soberano e pode decidir o que quiser, outras partiram da ideia de que somos totalmente ignorantes e só a palavra de Deus nos pode guiar no labirinto das nossas vidas. Mas houve quem ponderasse que, sendo Deus bom, e tendo nós sido criados “à sua imagem e semelhança”, a nossa inteligência e o nosso coração são capazes de discernir o que convém e o que não convém à nossa realização. É verdade que somos falíveis, a nossa inteligência e o nosso coração podem às vezes enganar-nos; é verdade que somos fracos, capazes de ceder às seduções do mundo e às nossas próprias paixões. Mas, ao menos nos momentos de serenidade e reflectindo na palavra e no exemplo dos irmãos, temos o poder de discernir o que é bem e o que é mal. Para nós e para o conjunto dos homens. E atrevemo-nos a acreditar que Deus não discordará muito daquilo que cuidamos ver. Julgo que a maioria dos pensadores cristãos, nomeadamente da tradição católica, se inscreve neste optimismo.
As tradições religiosas, e nomeadamente a tradição bíblica, registam “mandamentos de Deus”. Verificamos que estes mandamentos às vezes corrigem, outras vezes simplesmente confirmam e aperfeiçoam as intuições que estavam presentes nos homens. Agradecemos a Deus a confirmação de tudo aquilo que estava certo, o aperfeiçoamento do que estava incompleto, a censura do que estava errado, o alargamento dos nossos horizontes.
A primeira Leitura desta missa é tirada dos “Livros Sapienciais” da Bíblia e parece-me confirmar o que tenho vindo a dizer. “Em frente dos homens estão a vida e a morte: cada um levará o que escolher. Se quiseres, poderás guardar os mandamentos: ser fiel depende da tua vontade. O Senhor não empurra ninguém para a impiedade nem para o pecado”. (Bem-Sirá 15, 16-21).
A pouco e pouco, certos grupos judeus tinham-se tornado fanáticos da letra. A palavra do Evangelho é a este respeito muito importante. Não basta cumprir a letra dos mandamentos, é preciso cumpri-los por dentro: “Ouvistes que foi dito aos antigos: «Não matarás, quem matar será sujeito a julgamento.» Pois Eu digo-vos: Todo aquele que se irar contra seu irmão será sujeito a julgamento. (…) Ouvistes que foi dito: «Não cometerás adultério.» Pois Eu digo-vos: Todo aquele que tiver olhado para uma mulher para a desejar, já com ela cometeu adultério no seu coração.” Jesus vai mais longe, e convida a rever atitudes que tinham parecido aceitáveis no passado: “Ouvistes ainda que foi dito aos antigos: «Não faltarás ao que tiveres jurado, hás-de cumprir os teus juramentos para com o Senhor.» Pois Eu digo-vos que não jureis em caso algum. (…) A vossa linguagem deve ser: «sim, sim; não, não». O que for além disto vem do Maligno”. (Mt 5, 17-37).
Na segunda Leitura, S. Paulo coloca-se noutra perspectiva. À medida que o homem caminha, vai criando uma maneira de viver. Pode afundar-se na banalidade, no vício ou no crime; pode prosseguir objectivos nobres e estar cada vez mais identificado com eles. Destes últimos se diz que caminham na sabedoria. Mas, para além da sabedoria que resulta dos encontros com os homens e da vontade do bem, há ainda a sabedoria que se forma no convívio com Deus na fé e na oração. “São realidades que os olhos não viram, nem os ouvidos escutaram, nem passaram pela ideia de um homem, e que Deus preparou para aqueles que o amam!” (1Cor 2, 6-10).
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
II DOMINGO DA QUARESMA
A primeira leitura (Gen 12,1-4) evoca Abraão, figura que ocupa um lugar de relevo na Bíblia e na memória de judeus, cristãos e muçulmanos. Todos eles honram Abraão como “o pai dos crentes”.
Abraão viveu por volta de 1800 a.C., quando ainda não havia escrita alfabética. Antes de ser registada, a sua história passou de boca em boca, pelo espaço de muitas gerações, e foi certamente um tanto idealizada. Filho de uma época sôfrega e violenta, Abraão é uma personalidade forte, capaz de coisas grandes e também de acções muito mesquinhas. Mas acreditou em Deus, esteve sempre disponível para Ele, sem nunca Lhe apresentar uma factura. E Deus recompensa-o, quando e como muito bem entende.
Nascera na Mesopotâmia, em Ur da Caldeia, e aí vivera até uma idade avançada. Possuía terras e rebanhos, muitos parentes, era um homem respeitado. Pungia-o um desgosto: casado, nunca tivera filhos. É então que Deus intervém. “Naqueles dias, o Senhor disse a Abraão: Deixa a tua terra, a tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te hei-de indicar. Farei de ti uma grande nação. Em ti, todas as famílias da terra serão abençoadas. E Abraão partiu, como o Senhor lhe tinha ordenado.”
Judeus, cristãos e muçulmanos entenderam que a fé consiste em acreditar em Deus e obedecer à sua palavra. Entenderam também que, aos seus eleitos, Deus tem pedido grandes rupturas. Abraão estava já na idade em que apetece descansar, certamente lhe custou deixar casa, terras, familiares e amigos. (Leva consigo a mulher, um sobrinho, criados e rebanhos). A palavra a que Abraão obedece era ao mesmo tempo peremptória e obscura. Como dirá a Epístola aos Hebreus, “pela fé, Abraão, ao ser chamado, obedeceu e partiu para um lugar que havia de receber como herança. E partiu sem saber para onde ia.”(Heb 11,8).
O chamamento de Deus a Abraão inclui uma promessa: “Farei de ti uma grande nação”, inserida num horizonte mais vasto: “E em ti serão abençoadas todas as famí-lias da terra”. Os povos viviam em contendas e guerras. Deus não o ignora; mas não deixa de referir como parte essencial do seu novo projecto a comunhão dos homens na paz.
A segunda leitura (II Tim 1,8-10) apresenta-se como uma carta de S. Paulo ao seu discípulo Timóteo. Hoje pensa-se que terá sido escrita por um dos colaboradores de S. Paulo, depois da morte deste, numa altura em que as comunidades cristãs da Ásia Menor estavam a ser sujeitas a perseguições, e alguns cristãos tinham desertado. Nesta carta há uma ideia importante: estamos todos chamados por Cristo a viver na santidade, enfrentando sem desânimo as dificuldades. A propósito, queria reflectir sobre o tema do chamamento. Ao longo dos 1800 anos do Antigo Testamento, Deus interpelou pessoalmente, chamou, meia dúzia de pessoas. Na Igreja introduziu-se a ideia de que estamos todos chamados por Deus. Esta ideia é correcta se for deixada no vago: estamos chamados a ser santos, estamos chamados a viver de acordo com o Evangelho. Torna-se uma interpretação discutível se significa que Deus tem para cada um de nós um projecto que talvez não tenha chegado à nossa caixa do correio, e que devemos tentar descobrir. Este tipo de “descobrimento” proporciona com facilidade ilusões e extravagâncias.
Os três evangelhos sinópticos contam que, um dia, Jesus perguntou aos Apóstolos: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” e que Pedro respondeu: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Jesus confirmou a resposta, mas anunciou que caminhava para Jerusalém ao encontro da rejeição e da morte. Dias depois, quis que, no alto dum monte, os três discípulos em que depositava maior confiança entrevissem a sua glória; e que ouvissem, também, a conversa que ia ter com Moisés e Elias a respeito da cruz. (Mat 17,1-9 e paralelos)
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
III DOMINGO DA QUARESMA
Da Judeia, Jesus regressa à Galileia. O caminho mais curto passava pela Samaria. Os judeus e os samaritanos hostilizavam-se, embora falassem a mesma língua e tivessem praticamente a mesma religião. (Os samaritanos não aceitavam as autoridades religiosas dos judeus e afirmavam que o seu lugar de oração, no monte Garizim, valia tanto como o Templo de Jerusalém).
Jesus segue o caminho da Galileia e detém-se, fatigado, no poço de Jacob, junto à cidade de Sicar. Os discípulos vão comprar mantimentos. Uma mulher samaritana vem ao poço tirar água. Jesus pede-lhe de beber, pois só se alcançava a água com um balde e uma longa corda. A samaritana responde torto. Porque ele é judeu e porque não era costume um homem dirigir-se a uma mulher fora de casa. De resto, não há nela constrangimento. Viremos a saber que é uma mulher muito vivida, habituada a fazer o que lhe apetece, e de resposta pronta.
Jesus não se mostra desconcertado. “Se tu conhecesses o dom de Deus, e quem é aquele que te diz: ´dá-me de beber´, tu é que lhe pedirias, e Ele dar-te-ia uma água viva.” (Jo 4,10). Os judeus tinham vivido no deserto (veja-se a primeira leitura). Davam valor à água. Mais ainda à “água viva”, que brota fresca duma fonte, diferente da água estagnada duma poça. O Evangelho de S. João conta que Jesus utilizava com frequência imagens tiradas da experiência diária: o caminho, a vida, a luz, o cordeiro, a água viva.
A mulher resolve brincar: “Tu, que nem tens balde, que ideia é essa de te armares em fornecedor de água? Ou pensas que és mais poderoso do que o Patriarca Jacob, que abriu este poço?
E Jesus continua:”Todo aquele que beber desta água voltará a ter sede, quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. A água que eu lhe der tornar-se-á nele uma fonte a jorrar para a vida eterna.”
A conversa prossegue, até que a mulher, que é pecadora, mas não é estúpida, pressente que está diante dum profeta. Muda de tom e faz perguntas sensatas. E Jesus revela-lhe algo que indignaria os fariseus: Ele é o Messias. Deus quer ser adorado em espírito e em verdade, pouco Lhe importa o lugar. Sem dureza, também a faz compreender que a vida que tem levado não é digna. A mulher deixa o balde e vai chamar as gentes da cidade. Venham ouvir este homem. Será ele o Messias? Jesus demorou-se dois dias entre eles e foram muitos os que acreditaram.
Com a recordação deste episódio, que os Evangelhos Sinópticos acharam secundário, S. João sublinha muitas coisas. Jesus veio salvar todos s homens, de todas as raças e grupos, ignorantes e cultos, santos e pecadores. Esta mulher pertencia a um povo que os judeus desprezavam; tinha uma vida irregular e não parecia arrependida. Jesus não reage com “santa indignação”. Fala-lhe com serena autoridade, ajuda-a a sentir que, para além das bravatas, não está em paz consigo mesma; desperta nela uma sede maior, que só pode ser estancada pela água viva que é o dom de Deus; até lhe ensina que, doravante, terá a fonte em si mesma e que essa fonte jorra para a vida eterna. Finalmente, aceita que ela seja sua “apostola” entre as gentes da cidade. E a palavra fica posta a cada um de nós: Se tu conhecesses o dom de Deus…
A segunda Leitura ensina a mesma doutrina, num estilo diferente. Apesar de sermos pecadores, Jesus Cristo amou-nos até ao ponto de morrer por nós. A fé identifica-nos com Ele e torna-nos “justos”, em paz com Deus. Pela fé e pela esperança, este dom deixa de ser precário: é uma realidade na qual permanecemos. Na verdade, “a esperança não engana”.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
IV DOMINGO DA QUARESMA
O episódio relatado pelo Evangelho desta missa passa-se verosimilmente a seguir à Festa das Tendas, no último Outono antes da Paixão. Por ocasião da festa, o Templo era profundamente iluminado. E Jesus coloca-se em contraposição: “Eu sou a luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8, 12). Esta palavra desencadeia uma onda de aceitação e outra de protestos. Jesus insiste: “Se permanecerdes fiéis à minha mensagem, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade tornar-vos-á livres” (Jo 8, 32). Os contraditores declaram que nunca foram escravos e não precisam de ser libertos. Jesus prossegue: “Em verdade, em verdade, vos digo: se alguém guardar a minha palavra, nunca morrerá” (Jo 8, 51). Adiante afirma que foi dado a Abraão ver o seu triunfo. Respondem que Abraão já morreu há muito tempo. E Ele declara “Antes de Abraão existir, eu sou” (8, 58). “Então, agarraram em pedras para lhe atirarem. Mas Jesus escondeu-se e saiu do Templo”.
“Ao passar, Jesus viu um homem cego de nascença. Os seus discípulos perguntaram-lhe, então: «Rabi, quem pecou, para este homem ter nascido cego? Ele, ou os seus pais?» ” (9, 1-2). Trata-se duma pergunta típica de certa mentalidade religiosa pouco esclarecida. Muitos judeus pensavam que, quer a saúde, quer as doenças, eram enviadas por Deus; e que as doenças tinham de ser castigos de pecados. Jesus responde, suponho que de maneira sacudida, que nem ele nem os pais; mas que nele se vai agora manifestar o poder de Deus. “Tenho de realizar as obras daquele que me enviou enquanto é dia. Vem aí a noite… Enquanto estou no mundo sou a luz do mundo”. Então, cuspiu no chão, fez lama com a saliva, colocou-a nos olhos do cego e mandou que se fosse lavar à piscina de Siloé. Ele foi, e ficou a ver. Entendeu que tinha sido curado por um milagre, realizado por aquele “homem chamado Jesus”, a quem só conhecia pela voz, e faz disso propaganda. Mas os fariseus julgam de outra maneira: “Esse homem não pode ser de Deus porque não guarda o sábado”. Era, de facto, sábado nesse dia. Interrogam os pais do antigo cego, que se esquivam por medo. Sabiam que os fariseus tinham decidido expulsar da sinagoga quem apoiasse Jesus. Interrogaram-no a ele, e lançam-no fora porque teima em afirmar que um homem que dá vista a um cego de nascença só pode ser de Deus. Então Jesus procura-o e confirma-o na fé (“O Filho do Homem, o Messias, sou Eu que falo contigo”). E tem um desabafo de tristeza: “Eu vim a este mundo para provocar uma divisão: os que não viam vêem, e os que viam ficam cegos” (10, 39).
No texto do domingo passado, S. João procurava mostrar que o encontro com a samaritana realiza a imagem da água viva. Neste texto, convida-nos a reconhecer que Jesus é a verdadeira luz do mundo. Pode dar luz aos olhos dos cegos, é luz que ilumina a vida inteira do homem. De caminho, recorda o peso das afirmações de Jesus. Jesus sabe que tem agora pouco tempo, os seus inimigos vão matá-lo Sabe que a sua palavra será umas vezes aceite, outras vezes rejeitada, mesmo por aqueles que estavam em melhores condições para “ver”. Sabe ainda que um cego curado conta com a sua presença, mas se arrisca a ser rejeitado pelo mundo e a ficar só. S. João, que enfrenta as primeiras perseguições, convida os cristãos a aceitar esta realidade.
A segunda leitura, tirada da Epístola aos Efésios, aplica o tema da luz aos que acreditaram em Jesus: “Outrora vós éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz, porque o fruto da luz é a bondade, a justiça e a verdade” (Efes 5, 8). E recorda uma palavra que devia fazer parte dum cântico cristão: “Desperta, tu, que dormes, levanta-te de entre os mortos, e Cristo brilhará para ti.”.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
V DOMINGO DA QUARESMA
Jesus fala à samaritana da água viva que é o amor de Deus, e dá-lhe essa água; afirma aos judeus que é a luz do mundo, e dá a vista e a fé a um cego de nascença; diz a Marta que é a ressurreição e a vida, e ergue Lázaro do sono da morte.
Os Evangelhos gostam de recordar que Jesus era amigo de três irmãos, Lázaro, Marta e Maria, que moravam em Betânia, nos subúrbios de Jerusalém. Uns quinze dias antes da Páscoa, sentindo que o cerco se apertava à sua volta, Jesus retira-se da cidade. Lázaro adoece com gravidade, e as irmãs mandam-lhe recado. Jesus regressa, mas, ao chegar, o amigo estava morto e sepultado havia quatro dias. Apesar do respeito que têm por Jesus, as irmãs não calam uma discreta censura: se Ele não tivesse demorado tanto, teria podido salvar Lázaro. Pedem agora que reze por ele.
Jesus sabe que, tendo regressado a Jerusalém, vai ser preso e condenado, vai morrer na cruz. Veio movido pela amizade; e aproveita para dar aos que aí se encontram o sinal maior do seu poder. Ele, que vai trazer Lázaro de novo para a vida, não poderá ser vencido pela morte! Sim, vai morrer. Mas ressuscitará!
Diz:: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, mesmo que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim não morrerá para sempre.” E segue a palavra incisiva: “Tu acreditas?” (Jo 11, 25-26). Marta, que não entendeu a ideia de Jesus, declara que acredita na Vida Eterna e acredita que Ele é o Messias, o Filho de Deus que havia de vir ao mundo. Maria confessa a mesma fé. Jesus chama por Lázaro com voz forte e ele sai do túmulo. “Então, muitos dos judeus que tinham vindo a casa de Maria, ao verem o que Jesus fizera, acreditaram nele. Alguns, porém, foram ter com os fariseus …” (Jo 11, 45-46).
A reanimação de Lázaro não foi ainda a ressurreição. A ressurreição será, para Jesus e para cada um de nós, a entrada na vida definitiva, junto do Pai. A reanimação de Lázaro foi o regresso à vida neste mundo. Mas foi um sinal.
Como nas histórias precedentes, S. João quer sublinhar que a palavra de Jesus se cumpre de duas maneiras, em dois planos paralelos. Ele, que é a vida, reanima os mortos que quer; e promete a ressurreição a todos os que ouçam a sua palavra.
A vida eterna é uma das promessas fundamentais do Evangelho. Deus quer que sejamos seus filhos; manda que vivamos com justiça e amor neste mundo e convida-nos a viver com Ele e com os irmãos para além da morte. “Caríssimos, somos já filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é.” (I Jo 3,2).
A promessa da vida eterna não é um convite, a que nos desinteressemos deste mundo Só entra na vida eterna quem amou aos irmãos, aqui. “Sempre que ajudastes o mais pequenino dos meus irmãos, foi a Mim que ajudastes. Sempre que não ajudastes o mais pequenino dos meus irmãos, foi a Mim que não ajudastes.” (Mat 25, 31-46).
Por outro lado, a vida eterna é a resposta à nossa sede de vida. É o dia em que a verdade triunfará na paz, em que toda a dor e toda a injustiça serão ressarcidas, em que os ódios serão vencidos pelo amor. O dia em que homem verá Deus.
Temos a missão de anunciar a todos que o Verbo de Deus veio ao mundo, partilhou a nossa caminhada e morreu numa cruz, ressuscitou ao terceiro dia e subiu aos céus, convidou-nos que O seguíssemos. Parece claro que as nossas pregações a respeito da vida eterna são escassas e são frouxas. E, se calhar, a respeito de Deus e do seu projecto só a santidade é sinal. Precisamos de santos!
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
DOMINGO DE RAMOS
Na liturgia do Domingo de Ramos, a Igreja dá-nos uma perspectiva global da Paixão de Cristo. Na Quinta-Feira Santa, faz-nos participar na Última Ceia. Na Sexta-Feira Santa, convida-nos à “compaixão”, pela morte do Senhor e por todos os sofrimentos dos homens. Na noite de Sábado, celebra a Ressurreição.
As cerimónias deste Domingo começam com a Procissão dos Ramos, evocando a entrada de Jesus em Jerusalém dias antes da Páscoa: o povo aclama-o como Rei e Messias; mas Ele vem montado num burrinho, para cumprir a profecia de Zacarias, mas sobretudo porque a simplicidade e a pobreza são a sua maneira de viver. “Eis que o teu Rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso. Vem, humilde, montado num jumentinho, filho de uma jumenta. Ele exterminará os carros de guerra…, proclamará a paz para as nações.” (Zac 9,9-10).
A oração da missa proclama que Deus nos enviou Seu Filho na humildade e no dom de si mesmo; e pede que nos seja dada a graça de seguir os ensinamentos da paixão, “para merecermos tomar parte na glória da sua ressurreição”.
A primeira leitura é tirada do Livro de Isaías (segunda parte, escrita depois do regresso do cativeiro na Babilónia). É o terceiro dos “cânticos do Servidor de Deus”. “Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face àqueles que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam”. (Is 50,4-7).
O salmo responsorial (Sal 21(22)) é uma das palavras mais profundas do Antigo Testamento. Um justo, rodeado pelos inimigos e a ponto de sucumbir, lamenta-se perante Deus mas mantém a sua profissão de fé e a certeza de que Deus não é vencido. Segundo S. Mateus e S. Marcos, Jesus murmurou na cruz as palavras que dão início a este salmo: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?”.
A segunda leitura é tirada da Epistola aos Filipenses: “Cristo Jesus, que era de condição divina, não se valeu da sua igualdade com Deus… humilhou-se até à morte, e morte de cruz… Por isso o Pai o ressuscitou e Lhe deu um Nome…” (Fil 2,6-11). Este texto serve também de base à aclamação do Evangelho.
Alguns passos do Evangelho desta missa (Mat 26,14-27,66):
“… Enquanto comiam, tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: «Tomai e comei: Isto é o meu Corpo». Em seguida, tomou um cálice, deu graças e entregou-lho, dizendo: «Bebei dele todos, porque este é o meu Sangue, o Sangue da Aliança, derramado pela multidão, para remissão dos pecados».”
“… E, tomando consigo Pedro, Tiago e João, começou a entristecer-se e a angustiar-se. Disse-lhes então: «A minha alma está numa tristeza de morte. Ficai aqui e vigiai comigo». E, adiantando-se um pouco mais, caiu com o rosto por terra, enquanto orava e dizia: «Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice. Todavia, não se faça como Eu quero, mas como Tu queres».”
“… Disse-lhe o Sumo Sacerdote: «Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos declares se és tu o Messias, o Filho de Deus». Jesus respondeu-lhe: «É como disseste. E eu vos digo: vereis o Filho do homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo sobre as nuvens do céu».”
“…Chegados a um lugar chamado Gólgota, que quer dizer lugar do Calvário, deram-lhe a beber vinho misturado com fel. Mas Jesus, depois de o ter provado, não o quis beber… E pelas três da tarde, Jesus clamou com voz forte: «Eli, Eli, lemá sabactani?», que quer dizer: «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?». E Jesus, clamando outra vez com voz forte, expirou “.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
III DOMINGO DA PÁSCOA
A Igreja continua a meditar na Ressurreição do Senhor. Há duas maneiras de apresentar Jesus Cristo e a sua história. Uma delas parte da contemplação de Deus – Pai, Filho e Espírito Santo – e narra como o Pai enviou à Terra o Filho, que se fez homem no seio da Virgem Maria, morreu na cruz, ressuscitou e regressou ao Céu. Fazem assim as Epístolas aos Efésios e aos Colossenses e o prólogo do Evangelho de S. João, textos relativamente tardios. A outra maneira é a dos três Evangelhos Sinópticos: começam por descrever a vida de Jesus na Terra, a doutrina que pregou e os milagres que fez, a sua morte e a sua ressurreição, para finalmente nos fazerem adivinhar que Ele não é um simples homem, é a presença na Terra do Verbo de Deus.
A primeira leitura desta missa, do Livro dos Actos dos Apóstolos (2,14-33) resume a pregação de S. Pedro no dia do Pentecostes. S. Pedro é um homem de pouca cultura, não sabe nem filosofia nem teologia, não lhe peçam que explique o mistério da Santíssima Trindade e o mistério da Encarnação. Sabe apenas falar da sua experiência, da fé que depositou em Jesus, é testemunha da sua ressurreição. O que tem a dizer, di-lo com simplicidade e desassombro: “Jesus de Nazaré foi um homem acreditado por Deus junto de vós com milagres, prodígios e sinais… Vós o entregastes e lhe destes a morte, cravando-o na cruz por mão de gente perversa… Mas Deus ressuscitou-o, disso somos todos testemunhas. Exaltado pelo poder de Deus, recebeu do Pai o Espírito Santo prometido, e derramou-o, como estais a ver e a ouvir… Saiba com toda a certeza a casa de Israel que Deus estabeleceu como Senhor e Messias a esse Jesus por vós crucificado”. Certamente que tocou os corações dos ouvintes mais pela fé que irradiava do que pelas explicações que propunha. Em todo o caso, uma coisa tinha já entendido S. Pedro: que o seu Mestre tinha destruído para sempre o particularismo e o nacionalismo fechado da Sinagoga: “Convertei-vos e peça cada um o baptismo em nome de Jesus Cristo para a remissão dos seus pecados. Recebereis então o dom do Espírito Santo. A promessa de Deus é para vós, para vossos filhos e para todos os que estão longe: para todos os que o Senhor nosso Deus quiser chamar”. Tudo leva a crer que esta intervenção de S.Pedro se tornou por muito tempo modelo dos testemunhos dos cristãos.
O Evangelho narra o célebre episódio dos discípulos de Emaús. (Luc 24,13-35). Tristes, derrotados, embora não revoltados, afastavam-se de Jerusalém, porventura de regresso às ocupações anteriores. Mas, quase sem querer, iam recordando tudo o que sucedera naqueles dias. E eis que um desconhecido, que segue o mesmo caminho, se aproxima e mete conversa com eles. Por que estão tão tristes? Informado, censura-os sem dureza: Não entendem o que estava escrito! “Depois, partindo de Moisés e passando pelos profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito”. Eles começam obscuramente a entrar na esperança. Convidam o desconhecido para jantar e ficar com eles – porque estão interessados na conversa e porque não querem abandoná-lo, de noite, na estrada. Sentado com eles à mesa, “tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho”. Nesse momento O reconhecem: é o Senhor, vivo! O Senhor voltou a desaparecer da sua presença. Mas eles imediatamente se põem a caminho para dar a notícia aos irmãos.
O Livro dos Actos dos Apóstolos não explica, limita-se a registar, que o Senhor ressuscitado é o mesmo, mas doravante só se deixa reconhecer na fé. A fé é preparada pela procura sincera, pela meditação da Escritura, pela caridade fraterna, pela oração, e vai culminar na Eucaristia. Àquele a quem foi dado estar na fé pode ser dado ou não ver o Senhor com os olhos da carne. Pouco importa, sabe que Ele está para sempre consigo.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
IV DOMINGO DA PÁSCOA
A primeira leitura (Actos 2,14-41) continua a relatar a proclamação de S. Pedro no dia do Pentecostes. A afirmação singela mas firme de que ele próprio e os companheiros eram testemunhas da ressurreição e de que “Deus fez Senhor e Messias esse Jesus que vós crucificastes” põe muitos a reflectir. Inclinados a acreditar, perguntam: “Que havemos de fazer, irmãos?” E Pedro responde com segurança: convertam-se a sério, peça cada um ”o baptismo em nome de Jesus Cristo”, acreditem que receberão o perdão e “o dom do Espírito Santo”. No Antigo Testamento (cf. Joel 3,1-5) o dom do Espírito significava uma intervenção extraordinária de Deus. S. Pedro recorda o dom que ele e os companheiros acabam de receber e afirma que esse dom é também “para vós, para os vossos filhos, assim como para todos os que, lá longe, ouvirem o apelo do Senhor nosso Deus”. Será a pouco e pouco que ele e os outros cristãos irão compreender que o Espírito Santo é, com o Pai e o Filho, uma das “três Pessoas de Deus”.
A segunda leitura (I Pedro 2, 20-25) é um daqueles textos que precisam de comentário. Esta palavra, que hoje propomos a todos, era dirigida aos cristãos sujeitos à escravatura (2,18). S. Pedro exorta-os a que aceitem os sofrimentos com paciência, recordando os sentimentos de Cristo na sua Paixão. Ora hoje uma das preocupações do mundo, e também da Igreja, é acabar com a escravatura, é mesmo convidar os escravos a que sacudam a escravidão. A questão pode, de resto, ser alargada: face à fome, à doença, à injustiça, à violência, à morte, que deve o homem fazer? Creio que precisamos todos de uma certa dose de discernimento. Se um de nós adoece, deve ir ao médico, deve tratar-se, deve lutar com determinação contra a morte, em vez de se limitar a dizer “faça-se a vontade de Deus”- a primeira vontade de Deus é que cada um nós aceite gerir com bom senso a vida que recebeu. Mas chegará o dia em que havemos de compreender que a doença não tem remédio e é inútil procurar tratamentos mais complicados; nesse da, felizes de nós se soubermos aceitar os sofrimentos e a morte, acreditando que se inserem no mistério da Paixão, pedindo a Deus que nos ajude a ter os mesmos sentimentos de Cristo. No tempo de S.Pedro, a Igreja não tinha poder para libertar os escravos, o convite à revolta seria apenas uma sementeira de ódios sem esperança. Um pagão (que era filósofo e era imperador de Roma) tinha já reconhecido que “um escravo pode ser mais livre que o imperador”. É a essa liberdade que este texto convida.
No Evangelho (Jo 10,1-10) Jesus apresenta-se como o bom Pastor. O Antigo Testamento tinha dito que o Povo era o rebanho de Deus e os chefes – políticos e religiosos – eram os seus pastores. Mas os chefes políticos e religiosos detestam Jesus e querem matá-lo. Apresentam-se como defensores da verdade e da tradição, mas só cuidam dos seus interesses. Por isso Jesus retoma a imagem. Existiam no campo espaços cercados onde vários pastores recolhiam ao fim da tarde os seus rebanhos. Cada um desses pastores ficava, por turno, a vigiar a entrada, era “a porta”. De manhã, o bom pastor “chama cada uma das ovelhas pelo seu nome e leva-as para fora. Depois, caminha à sua frente e as ovelhas seguem-no, porque conhecem a sua voz”. O bom pastor levava as ovelhas para os pastos verdes e para a água fresca, defendia-os dos ladrões e dos lobos. As ovelhas conheciam-lhe a voz e confiavam nele. Por sua vez, o bom pastor conhecia as suas ovelhas e tinha posto nome a cada uma. Bem sabemos que, hoje, a imagem do rebanho se usa para fustigar o seguidismo e a alienação. Na boca de Jesus significa, pelo contrário, a confiança livre e bem fundada, a relação profunda e mútua do amor.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
V DOMINGO DA PÁSCOA
Nestas últimas semanas, a Liturgia fez-nos reler os textos que anunciam a Ressurreição de Jesus e contam como foram mudadas as vidas dos discípulos. Hoje, regressa à Última Ceia para meditar na conversa da despedida (Jo 14,1-12).
Depois do lava-pés, o Senhor anuncia que vai partir. Vai seguir o seu caminho, caminho de fidelidade ao Pai e aos homens, caminho que o levará à cruz. Tinha dito a Pedro: “Para onde Eu vou, não podes seguir-me por agora; seguir-me-ás mais tarde” (13,36). Diz neste momento a todos: “E, para onde Eu vou, vós sabeis o caminho”. Claro que somos tentados a dizer, como Tomé: Senhor, não sabemos para onde vais, não sabemos o caminho! Mas Jesus é desconcertantemente simples e teimoso. Quantas vezes explicou, a eles e a nós, que o caminho é a fidelidade: é dizer “não” à injustiça, ao ódio, a toda a mentira, é dizer “sim” à fraternidade e ao serviço dos pobres, é “lavar os pés” aos irmãos! A esse respeito já disse tudo, não tem mais a dizer.
Faz uma promessa: Virá, um dia, buscar cada um de nós, “a fim de que, onde Eu estou, vós estejais também”. A propósito, afirma que na casa do Pai há muitas moradas. Na interpretação habitual, isto significa que há no céu lugar para todos os que Ele chamou. Um comentador recente lê o texto de outro modo. Claro que o Céu não é uma má estalagem com falta de lugares, nem valia a pena desfazer essa dúvida. O que Jesus está a dizer é que, no Reino que já teve início, há muitas maneiras de ser fiel: o caminho do amor tem de ser vivido nas condições concretas da vida de cada um.
Filipe continua com as nossas interrogações: Mas Deus é tão difícil… Mostra-nos o Pai! A resposta de Jesus, ou é verdadeira, ou é a palavra dum louco: “Filipe, quem me vê, vê o Pai”. Nós acreditamos que é a resposta verdadeira. O Pai diz-se eternamente no Filho, e enviou à Terra o Filho feito Homem para nos revelar o Seu mistério e nos salvar dos nossos pecados. O “intelectual” que pretendesse ir directamente ao Pai seguiria por caminho errado. Deus revela-se no rosto e no caminho de Jesus. Nomeadamente, e sobretudo, no caminho que passa pelo Calvário. (Ler, a propósito, o muito notável livro sobre a Madre Teresa de Calcutá, ed Aletheia, 2008).
A primeira leitura (Act 6, 1-7) narra um episódio aparentemente banal. A comunidade cristã de Jerusalém era feita de judeus convertidos. Mas havia os judeus que tinham vivido sempre na Palestina e eram seguidores ferrenhos de todas as tradições, e havia os “helenistas”, judeus que viajavam pelo estrangeiro, falavam grego e eram mais “progressistas”. Entre eles há muito existia um conflito latente, e a conversão a Jesus não tinha apagado todas as tensões. Neste momento, os helenistas queixam-se de que os seus pobres estão a ser menos ajudados que os pobres do outro grupo. Os Apóstolos reagem pedindo à comunidade que indique sete homens “de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria” para tratarem destes assuntos. É uma atitude sensata de descentralização. Os Apóstolos “impõem as mãos sobre eles”. Apesar deste rito, não é totalmente óbvio que estes sete homens tenham sido “ordenados” diáconos. O que certamente pode dizer-se é que, quando os diáconos foram instituídos, porventura por volta do ano 80, a Igreja prosseguiu nesta atitude descentralizadora.
A segunda leitura (I Ped 2,4-9) parece ser uma exortação de S. Pedro, dirigida às comunidades da Ásia Menor fundadas por S. Paulo, as quais estavam agora sujeitas a vexames e perseguições. Retomando ideias do Antigo Testamento e de S. Paulo, recorda que Cristo é a pedra angular, sobre a qual se constrói a Igreja, ela mesma constituída por pedras vivas. Quanto a eles, são geração eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido por Deus. Tanto, quanto os cristãos oriundos do judaísmo.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
PENTECOSTES
Jesus Cristo é o Filho, o Verbo de Deus, a Sabedoria de Deus, que o Pai enviou ao mundo. Tomou a condição humana no seio da Virgem Maria, aprendeu a falar a língua de Maria e de José, enraizou-se naquela cultura. Vivendo como nós as alegrias e as dores desta caminhada, Jesus fez-nos compreender, pela palavra e pelo exemplo, que Deus é bom e nos convida a viver para a verdade e para o amor, portanto para a fraternidade, para a justiça e para a paz.
Esta mensagem desagradou aos poderosos do mundo e também aos poderosos da religião, que apostavam num deus aliado dos seus interesses e mantenedor da ordem estabelecida. Coisa mais estranha, não entusiasmou muito os pobres, que teimavam em pôr a esperança num Messias – de – poder, num Deus – de – constantes – milagres.
Lhe como prémio a nossa salvação: a salvação de todos nós, pecadores, que Ele considerou sempre como irmãos. O Pai e Jesus enviam ao mundo o Espírito Santo.
Tudo tinha sido dito e feito por Jesus. Mas faltava convencer cada um dos homens a abrir o coração à mensagem do Evangelho e a conformar a vida com ela. Era preciso que, em cada geração, os cristãos entendessem os “sinais dos tempos” de modo que o Evangelho fosse anunciado como Cristo o anunciaria se estivesse aqui. Esta é a missão do Espírito Santo. O Espírito Santo é o amor infinito e eterno entre o Pai e o Filho, e é por isso também o amor de Deus por cada um dos homens. Habitando connosco, o Espírito ajuda-nos a “amar como Cristo amou”.
O Evangelho desta missa (Jo 20, 19-23) narra que, no domingo da Páscoa, Jesus apareceu aos discípulos reunidos e lhes comunicou o Espírito Santo. A primeira leitura (Act 2,1-11) conta que, no dia do Pentecostes, o Espírito Santo manifestou a sua presença. São dois momentos do mesmo mistério, ou talvez duas maneiras de o descrever.
Não se conclua daqui que o Espírito Santo só começou a actuar no dia do Pentecostes. “Não há dúvida de que o Espírito Santo já actuava no mundo antes de Cristo ser glorificado”(Conc.II do Vaticano, Ad Gentes, 4). Desde que há homens na Terra, o Espírito está junto à inteligência e ao coração de cada um, chamando-o à fidelidade aos outros homens, abrindo-lhe caminhos para entender a presença de Deus. Por outro lado, a ressurreição de Jesus e a sua partida para o Pai inauguram um tempo novo, que pode e deve ser chamado o tempo do Espírito Santo. O Pentecostes manifesta, quer o antigo, quer o novo trabalho do Espírito.
Para os judeus daquela época, o Pentecostes era a festa da Lei. Uma tradição afirmava que o povo tinha alcançado o Sinai 50 dias depois da fuga do Egipto, e aí Moisés recebera das mãos de Yahweh as tábuas da Lei. É possível que o texto dos Actos dos Apóstolos tenha a intenção de inculcar que a Lei fica doravante superada pela presença do Espírito.
A frase “Jesus Cristo é Senhor” é talvez a mais antiga profissão de fé dos cristãos. Na segunda leitura (I Cor 12,12-13), S. Paulo afirma que ninguém é capaz de fazer esta profissão de maneira profunda se o Espírito Santo o não apoiar. Isto contraria a nossa suficiência, a ideia de que não precisamos de ninguém que nos indique o caminho, mas é um eco de várias afirmações de Jesus (Mat 11,27; Luc 10,22; Jo 15,4). S. Paulo ensina ainda que os vários dons extraordinários que se manifestavam entre os cristãos de Corinto não eram para glória de nenhum deles. Esses dons provinham do Espírito e eram para o bem de todos.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE
Desde que o mundo é mundo, quase todos os que têm alguma espécie de poder – dinheiro, posição social, inteligência, manha, sedução – reservaram para si a maior parte da Terra e dos seus bens. Desde que o mundo é mundo, tem havido homens e mulheres capazes de entender que os homens são todos irmãos, e por isso se libertam de lucros injustos, partilham com os necessitados, lutam por uma sociedade diferente. Uns e outros se confrontaram com a ideia de Deus. Os primeiros, ou encolheram os ombros, ou procuraram fazer de Deus um baluarte para os seus privilégios: disseram que Deus estabeleceu o mundo desta maneira e prometeu que recompensará no além os que sofreram fome, humilhações e injustiças. Devo reconhecer que houve e há homens e mulheres que lutam pela justiça e não acreditam em Deus: talvez porque se revoltaram contra esta imagem e não imaginaram que pudesse haver um Deus diferente.
Eu creio num Deus que é bom, mas é difícil de entender. Criou-nos para a alegria, e colocou-nos neste mundo tão duro, às vezes tão absurdo. Manda-nos viver na verdade e na justiça, sabendo que quem é mentiroso e injusto costuma passar à frente. Convida-nos a lutar contra toda a escravidão, e diz-nos que a violência não é caminho nem para a justiça nem para a paz. Quem é este Deus tão difícil? Acredito que é o Deus que veio à Terra sem poder e sem esplendor, e que experimentou a morte na cruz. Acredito que ressuscitou e nos convida a segui-lo, hoje na Terra e um dia no Céu.
Muito depois de Jesus, os cristãos “sábios”começaram a falar de Deus como se Ele fosse o Senhor da ordem e dos programas, a totalidade dos possíveis. Ora o Deus da ordem e dos programas é o Deus de Platão, o Deus da totalidade é o Deus de Descartes. Nessas épocas de aparente “saber”, sorrimos com indulgência de certos passos do Antigo Testamento, que nos pareciam espelhar uma mentalidade primitiva: Deus a resolver castigar a maldade dos homens e depois a desistir, ou mesmo a “arrepender-se” dessa decisão (Jonas 3,9-10); Deus aceitando discutir com Abraão se era ou não justo destruir uma cidade de pecadores (Gen 18,16-33); Deus criando o homem e a mulher e dando-lhes o mundo para que o modelem à sua maneira (Gen 1,27-30). Estamos hoje a perceber que a linguagem da Bíblia era mais sã e mais verdadeira do que a nossa. “Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, não Deus dos filósofos e dos sábios”. O Deus da Bíblia, não Lhe repugna incitar Moisés a que se revolte contra a escravidão e liberte o seu Povo (Ex 3,1-15). O Deus da Bíblia convida-nos a inventar a vida e a história, veio ter connosco para que tivéssemos a alegria. (Cf. Jo 16,24; I Jo 1,4).
O Novo Testamento diz-nos que Deus, sendo único, não é “só”: é Pai, Filho e Espírito Santo. O Filho é gerado eternamente pelo Pai e é enviado pelo Pai ao nosso encontro. O Espírito Santo procede do Pai e do Filho e é-nos enviado pelo Pai e pelo Filho. A “vida íntima “ de Deus fundamenta as missões do Filho e do Espírito Santo.
A primeira Leitura desta missa (Ex 34,4-9), conta que, tendo o Povo caído em pecado, Moisés vai temeroso ao encontro de Deus. E ouve que Ele é “um Deus clemente e compassivo, sem pressa para se indignar, cheio de misericórdia e fidelidade”.
A segunda Leitura (II Cor 13, 11-13) tem a palavra com que hoje começamos as nossas celebrações: “ A graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, o amor do Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam convosco”.
O Evangelho (Jo 3, 16-18) diz que “o Pai amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito”; e que “o Pai não enviou o seu Filho ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele”.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XIV DOMINGO DO TEMPO COMUM
Na Terra, a vida nunca foi satisfatória. Os crentes pedem a ajuda de Deus. A partir do séc.VIII a.C., os Profetas anunciam que Deus há-de intervir, e para isso enviará um Messias. Espontaneamente, os homens idealizam esse Messias. Terá de ser um Rei glorioso. Investido da autoridade e do poder de Deus, castigará os maus e premiará os bons, estabelecerá para sempre no mundo a justiça e a paz. O próprio João Baptista, que vive um misticismo muito austero, imagina assim o Messias (Mt 3,7-12 = Luc 3,7-18), os Apóstolos vão ter muita dificuldade em pensar doutra maneira (Mat 20, 20-28 = Marc 10,35-45 = Luc 22,24-27).
Mas, já no séc.V a.C., o profeta Zacarias tinha tido uma perspectiva diferente. O Messias não seria um Rei magnífico, entrando à frente da sua cavalaria em Jerusalém. “Eis que o teu Rei vem a ti. Ele é justo e vitorioso. Vem humilde, montado num jumento, sobre um jumentinho, filho duma jumenta. Ele destruirá os carros de guerra da terra de Efraim e os cavalos de Jerusalém. O arco de guerra será quebrado. Proclamará a paz entre as nações, o seu império irá até às extremidades da terra.” (Zac 9,9-10, primeira leitura desta missa).
Jesus manteve a ideia do Antigo Testamento, segundo o qual Deus é o “Senhor do Céu e da Terra” (Mat 11,25). Colocou-se em pé de igualdade com Ele: “Eu e o Pai somos um “(Jo 10, 30), “Quem ama o pai ou a mãe, o filho ou a filha, mais do que a Mim, não é digno de Mim” (Mat 10,37). Confirmou aos Apóstolos que é o Messias enviado pelo Pai (Mat 16,13-20). Mas retirou-se quando a multidão quis aclamá-lo como rei (Jo 6,15), nunca esteve interessado em mandar, estragou a recepção triunfal que lhe tinham preparado em Jerusalém aparecendo montado num burrinho. Em apoio da perspectiva de Zacarias.
Logo no princípio do seu tempo de missão, respondendo a Satanás que o tentava no deserto, explicou que não estava interessado nem no poder nem no dinheiro e que não ia manejar o sobrenatural como arma de sedução (Mat 4,1-11 = Luc 4,1-13).
O Evangelho deste domingo (Mat 11,25-30) mostra-nos que estas atitudes são profundamente assumidas: “Eu te bendigo, ó Pai, Senhor do Céu e da terra, que escondeste estas verdades aos sábios e aos inteligentes e as revelaste aos pequeninos” (Mat 11,25). Certamente que Jesus não manda desprezar nem a inteligência nem o saber, Ele que veio viver a sério a nossa condição humana. Disse, sim, que as ideias e as teorias dos homens nem sempre coincidem com as ideias e os projectos de Deus.
Os homens colocam a justiça antes do amor, imaginam que o poder e a riqueza são a chave da história humana, cuidam honrar Deus chamando – Lhe o “Todo-Poderoso”. Hoje, o capitalismo recruta milhares de escribas inteligentes, que saibam tudo a respeito do dinheiro e da maneira de o fazer crescer.
Jesus nem se cansou a argumentar contra este retrato de Deus e da história dos homens. Veio simplesmente viver “a maneira de Deus”. Era um Cristo sem poder…
Julgo que não é temerário extrapolar. Deus também deve precisar muito pouco duma Igreja organizada de maneira perfeita, bem implantada entre as sociedades deste mundo, com resposta feita para todas as perguntas: seria uma Igreja morta, a viver glórias do passado. Suponho que Deus precisa duma Igreja composta por homens e mulheres normais, movendo-se num mundo que nem sempre entendem, obrigados a viver “a dinâmica do provisório”, com ideias às vezes imperfeitas, mas um amor muito grande, procurando dia a dia imitar o Senhor na sua fidelidade ao Pai e a sua dedicação a todos os homens: começando pelos pobres, pelos doentes, pelos pecadores.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XV DOMINGO DO TEMPO COMUM
O Evangelho dá-nos a parábola do semeador (Mat 13,1-9). Começo por recordar que, na Palestina daquele tempo, o semeador lançava a semente e só depois lavrava a terra. Daí que algumas sementes caíssem sobre caminhos, outras no meio de pedras, outras entre espinhos, outras enfim em terra boa. Os comentadores recentes acham que a primeira intenção da parábola é sublinhar que a actividade do homem choca quase sempre com obstáculos, mas é preciso não desistir: só assim se consegue a colheita. Do mesmo modo, a palavra tem de ser semeada. Se vai dar fruto ou não, qual a qualidade desse fruto – são meditações que não podem deter o pregador nem diminuir o seu empenho.
A primeira leitura parece dizer que o próprio Deus tem este tipo de paciência: não corta connosco quando Lhe fugimos, tem esperança de que a sua palavra acabe por produzir efeito, realize a sua missão (Is 55,10-11).
É curioso que, apesar desta lucidez da Bíblia, que nunca ignorou os obstáculos, a tradição cristã sonhou demasiadas vezes com um “paraíso térreas” onde não houvesse dificuldades nem perigos, tudo estivesse de antemão resolvido, como num jardim-de-infância ideal. É verdade que o cristianismo fala da vida eterna, onde o mal será superado; mas a vida eterna não será o “eterno descanso”, será a participação da própria vida de Deus. A vida na terra é feita de trabalho e de luta.
Mesmo quando aceitou pensar nos obstáculos, a tradição cristã tentou muitas vezes minimizá-los à custa da “explicação”. Toda a gente conhece – e toda a gente foge delas como o diabo da cruz – aquelas pessoas que, ao visitarem um doente ou ao fazerem uma visita de pêsames, supõem fazer uma obra boa “explicando” que tudo aconteceu para o maior bem das almas ou pelos secretos desígnios de Deus. Mais geralmente, os cristãos têm gasto muito tempo e muita energia a “explicar” por que é que Deus permite o mal no mundo. Para aperfeiçoar os bons, por castigo do pecado de Adão e Eva, porque o sofrimento é a moeda para comprar a salvação.
Os textos mais importantes da Bíblia fogem a esta tentação.
O Livro de Job imagina a história dum homem que era bom e feliz, sobre quem desabam um dia todas as desgraças. Num primeiro momento, ele aceita sem discutir. Tinha-se habituado a pensar que importa viver na rectidão, aceitando as alegrias e as dores na fidelidade a Deus. Depois, vêm os amigos e lançam-no na perturbação. Eles dizem que o que lhe está a acontecer é sinal de que na sua vida há muitos crimes ocultos; pois Deus premeia os justos e castiga os pecadores. Job ousa afirmar que, mesmo sem ser santo, tem menos pecados que a maioria dos homens. Mas eles insistem, e Job entra na revolta: se Deus castiga os seus pecados vulgares e deixa em paz os grandes pecadores, é injusto. Na sua amargura, diz coisas inconsideradas e desafia Deus a que lhe apareça e lhe explique o que quer dele. Finalmente, Deus revela-se e a sua palavra espanta todos. Diz aos amigos de Job que eles são estúpidos e maus. Reconhece que Job tem sido um homem muito bom e “finge que não ouviu”as inconveniências que ele acaba de proferir. Diz-lhe apenas que não vai explicar-lhe mais nada. Aquilo que gosta de ver é que cada homem seja fiel, na alegria ou na dor – como Job tem sido – e não fuja para o atoleiro das “explicações”.
Nos Evangelhos, lemos que constantemente Jesus nos lembra que este mundo está sujeito ao mal, e nos envia a lutar contra o mal. Por qualquer razão, não se deteve a “explicar”. Ou melhor, só nos explicou uma coisa: que a única maneira de lutar contra o pecado é procurar viver no amor: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos. Não explicou mais, deu exemplo.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM
O Evangelho (Mat 13,24-43) dá-nos três parábolas, a do trigo e do joio, a do grão de mostarda e a do fermento. São análogas à do semeador, e constituem igualmente um grande desafio à nossa maneira de pensar.
A existência do mal é o grande escândalo, que condiciona as nossas vidas e atormenta as nossas inteligências. Como é possível que um Deus perfeito tenha criado este mundo, onde há tanta dor, tanta injustiça, tanto pecado? Se é Todo-Poderoso, por que não impede o mal, por que não elimina os maus? Vale a pena viver num mundo como este?
Às vezes, os poetas pressentem a resposta mais depressa que os filósofos:
Severino retirante,
Deixe agora que lhe diga:
Eu não sei bem a resposta
Da pergunta que fazia
Se não vale mais saltar
Fora da ponte e da vida;
Nem conheço essa resposta
Se quer mesmo que lhe diga.
É difícil defender,
Só com palavras, a vida,
Ainda mais quando ela é
Esta que vê, severina;
Mas se responder não pude
À pergunta que fazia,
Ele, a vida, a respondeu
Com a sua presença viva;
E não há melhor resposta
Que o espectáculo da vida
Vê-la desfiar seu fio,
Que também se chama vida
Ver a fábrica que ela mesma
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;…
João Cabral de Melo, Morte e Vida Severina
Jesus também não deu explicações teóricas; de resto, nem mesmo pôs o assunto em problema. Comportou-se como se a existência fosse um dado que não adianta discutir, mas pede ao homem fidelidade. Assim viveu; e assim morreu na cruz.
A parábola do trigo e do joio diz em suma que Deus não nos vai fazer a vontade, não vai matar todos os maus. Vai deixar que o mundo continue desta maneira até ao tempo da ceifa…
As parábolas do grão de mostarda e do fermento falam da força da palavra. Mas Jesus parece ter tanto empenho em sublinhar a força da palavra como preocupação de vincar que se trata duma força humilde e contida, diferente da força cega duma torrente. O fermento é eficiente, em pouca quantidade faz levedar uma grande massa de farinha, mas actua sem brilho. O grão de mostarda é uma semente pequenina, vai dar origem a uma planta grande; mas grande entre as outras plantas da horta. Parece claro que Jesus quis deliberadamente fugir à imagem que encantava o Antigo Testamento, a grandeza dos cedros do Líbano.
A primeira leitura (Sab 12,13-19) recorda que Deus julga com brandura precisamente porque é Todo-Poderoso. Nós, os homens, é que julgamos e condenamos sem piedade. Em face de Deus, o justo aprende a ser humano.
A segunda leitura (Rom 8,26-27) fala da oração. Sabemos que é importante rezar, mas não temos tempo. Quando arranjamos um bocadinho de tempo, não sabemos que fazer. S.Paulo deve ter tido a mesma experiência. Depois, verificou que o Espírito Santo o ia ensinando. Orar é dar tempo a Deus, mas não é só isso. É também pedir, por nós mesmos e por todos os irmãos, mas não é só isso. Ao orar, o homem tenta “ir” à presença de Deus e dizer-lhe que quer ser dEle e está disponível para servir o seu Reino. Sem condições. Reconhece que é pecador e começa a entender que Deus é o Senhor do perdão e da paz. Diz S.Paulo que o Espírito Santo passa a guiar o homem nestes caminhos e conduz ao Pai. Não o torna escravo de Deus, torna-o filho. Faz que encontre a liberdade maior no diálogo cada vez mais fundo com o mistério pessoal de Deus.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – (Uma homilia do Pe. João Resina)
No séc. IX a.C., o rei de Israel tinha casado com uma princesa estrangeira. Esta tenta extinguir a religião que vinha de Moisés e substituí-la pelo culto dos ídolos do seu povo. Mas Elias, o primeiro profeta de que a Bíblia fala, luta corajosamente contra a nova religião e manda que os judeus fiéis matem os sacerdotes desse culto. A rainha jura que ele vai ter a mesma sorte. Em suma, duas violências em choque, uma e outra apoiadas em ideias de religião. Elias refugia-se no deserto, e depois caminha para o monte Horeb (outro nome do Sinai, onde Deus aparecera a Moisés). Entra numa gruta para passar a noite. Então há uma tempestade furiosa, um tremor de terra violento, um grande incêndio. Parecia o cenário adequado: Deus estaria a mostrar o seu acordo com a dureza de Elias. Depois de tudo isto, Elias ouve “o murmúrio duma brisa ligeira” (ou mesmo, segundo outra tradução possível, “uma voz de silêncio”). Elias começa a entender que é este o verdadeiro estilo de Deus. Mas esta é uma verdade tão nova que só muito mais tarde vai dar fruto.
Elias tinha ouvido dizer que aquele que fixasse o rosto de Deus seria imediatamente fulminado. Por isso, põe uma manta sobre a cabeça antes de sair da gruta e falar com Deus. Foi preciso que o Filho de Deus, Jesus, viesse a nós de rosto descoberto para aprendermos que o verdadeiro amor acaba com o temor (cf.I Jo 4,18).
A primeira leitura (I Reis 19,9-13) levanta uma questão importante: qual é a imagem de Deus que nós temos? É que não basta dizer ou pensar que acreditamos em Deus. É preciso que a imagem que fazemos d’ Ele não seja uma contradição e uma ofensa à sua maneira de ser. Por exemplo, a Inquisição foi feita por “cristãos” – às vezes padres e bispos – contra os que “estragavam a doutrina”. Mas Deus é Senhor do amor, não é Senhor de ódios e teimosias. Os que fizeram a Inquisição serviam o ídolo que tinham inventado, não serviam a Deus. No fundo, eram mais hereges do que aqueles que se propunham julgar, eram profundamente ateus.
Os antigos tinham muitas ideias erradas. Deus formou um povo – o povo eleito – e suscitou no meio dele homens e mulheres que fossem contribuindo, pela palavra e pelo exemplo, para que essas ideias erradas fossem corrigidas.
Uma das ideias erradas era imaginar Deus à maneira dos reis da terra. Os reis da terra mandavam e queriam ser obedecidos, castigavam quem não cumpria, tinham às vezes exigências absurdas. No tempo de Abraão (1800 anos antes de Cristo), ainda havia sacrifícios humanos. Os poderosos sacrificavam crianças, às vezes os próprios filhos, para pedir o fim de calamidades ou uma maior ajuda do céu. A história do sacrifício de Isaac, que vem contada no Livro do Génesis, deve ser uma espécie de parábola, destinada a explicar que os sacrifícios humanos não são aceites por Deus.
Na segunda leitura (Rom 9,1-5), S. Paulo levanta um problema que nem ele, nem ninguém, é capaz de resolver: por que será que o povo eleito, acarinhado por Deus ao longo de 1800 anos, rejeitou Jesus? Creio que seria absurdo falar de um desígnio de Deus. Digamos antes que é sinal da espantosa liberdade dos homens, que Deus decidiu respeitar. Dito isto podemos seguir S. Paulo, que se declarava pronto a aceitar todos os sacrifícios para poder ajudar o seu povo a reencontrar Jesus
****************************************************************************
XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM
O evangelho desta missa (Mat 13,44-52) conta três parábolas. A primeira e a segunda são parecidas: “O reino dos Céus é semelhante a um tesouro escondido num campo. O homem que o encontrou … ficou tão contente que foi vender tudo quanto possuía e comprou aquele campo. O reino dos Céus é também semelhante a um negociante que procura pérolas preciosas. Ao encontrar uma de grande valor, foi vender tudo quanto possuía e comprou essa pérola.”
Nas homilias dos últimos domingos tenho recordado que os cristãos passam muito tempo a explicar por que é que existe mal no mundo, mas Jesus não tinha essa preocupação. Comportava-se como se o mal fosse uma realidade evidente, que não perdia tempo a explicar, mas contra a qual lutou e nos convidou a lutar. Quanto a nós, temos de lutar contra o nosso próprio egoísmo e pecado, temos de lutar contra a fome, a doença, a ignorância, a mentira, a injustiça, a guerra, contra toda a espécie de mal. Temos de lutar sem violência, na humildade e no amor.
Há no entanto o perigo de, ao tentar fazer isto, nos deixarmos acabrunhar pela força do mal e pela magreza dos resultados que conseguimos. Houve santos que caíram numa espécie de dolorido místico: tudo o que é preciso é imitar Cristo na cruz. Estas duas parábolas sugerem-nos uma atitude da esperança e da alegria: é com determinação e entusiasmo que aceitamos a aventura da vida.
Quer o homem que comprou o campo, quer o homem que comprou a pérola, não pensaram que “faziam um sacrifício” vendendo tudo o que tinham. Pensaram, sim, naquilo que iam ganhar. É verdade que, aqui e além, decidimos perder coisas por amor de Deus e dos homens. Mas julgo que é errado vivermos apenas na perspectiva da redenção pelo sofrimento. Quando o dom é verdadeiro, temos a alegria de entender que ele contribui para que o reino de Deus venha a nós.
A terceira parábola conclui com uma palavra significativa: “Todo aquele que começou a entender o reino dos Céus é semelhante a um pai de família, que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas.” Julgo que isto significa que a mensagem de Cristo é um tesouro vivo. Não só nos ensina a manter verdades que não mudam (por exemplo a Eucaristia), como nos ajuda a enfrentar, com a verdade de Cristo, situações novas (por exemplo a paternidade responsável ou a guerra nuclear).
A primeira leitura (I Reis 3, 5-12) conta que, quando Salomão subiu ao trono, ainda jovem, não pediu a Deus nem riquezas, nem vitórias militares, pediu sabedoria para poder governar com justiça. É, sem dúvida, uma oração esplêndida. A Bíblia tem a coragem de contar que, à medida que ia envelhecendo, Salomão se afastava deste projecto: queria agora muito poder, muitas riquezas, muitas mulheres. Isto nos recorda que o ser humano pode a cada instante converter-se mais profundamente ao bem ou fechar o coração a Deus e deixar-se conquistar pelo mal.
A segunda leitura (Rom 8, 28-30) é um texto difícil de S. Paulo, que remete para a doutrina de Cristo e da salvação que ocupa a maior parte desta epístola. Não tenho cultura suficiente para o comentar de maneira simples. Neste texto aparece a palavra “predestinar”. À primeira vista, S. Paulo parece dizer que Deus decidiu “predestinar” uns tantos e depois lhes forneceu as condições para se salvarem. Os especialistas na Bíblia lêem de maneira diferente: Ao criar o mundo, Deus deseja que todos os homens que nele vão aparecer alcancem a vida eterna, todos somos objecto desta “predestinação”. A todos chegam auxílios. Mas é verdade que aqueles que acreditaram em Jesus sentem-se especialmente gratos pela ajuda que lhes chegou.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM
A primeira leitura (Isaías 55,1-3) aparece no momento em que o Profeta adivinha que o seu Povo, há 50 anos deportado para Babilónia e aí obrigado a permanecer, vai receber licença para regressar. Mas no Povo há situações e atitudes muito diferentes. A maior parte dos judeus deportados vive na miséria, não tem dinheiro para comprar pão, muito menos “vinho e leite”. Mas há aqueles que conseguiram singrar e têm agora bons negócios e uma vida regalada. O Profeta antevê que os pobres vão correr o risco de atravessar este novo deserto em direcção à Terra sempre prometida, mas os instalados vão encontrar pretextos para ficar. Ora a reconstrução de Jerusalém e a reorganização da vida na Palestina vai ser difícil sem a participação desses homens mais empreendedores. Em nome de Deus, o Profeta exorta “todos os que têm sede” a procurar a “nascente das águas”. Recorda que os ricos “gastam dinheiro naquilo que não sacia”, e que o caminho de Deus é para todos gratuito: “Vinde e comprai, sem dinheiro e sem despesa!”
É claro que esta situação, vivida à letra no séc.VI a.C., se repete de algum modo em todos os tempos. São poucos os homens e as mulheres que compreenderam que “o seu coração andará inquieto até que repouse em Deus” (a palavra é de S.Agostinho), são muitos os que continuam a gastar tempo, dinheiro e energia em coisas que só até certo ponto saciam.
A segunda leitura (Rom 8,35-39) dá-nos a atitude de S.Paulo. Há muito respondeu que sim, e não voltará atrás. É quase ingenuamente que pergunta: “Quem poderá separar-nos do amor de Cristo?” Por causa de Cristo já enfrentou a fome, a nudez, a perseguição, o risco constante da morte. Venha o que vier! S.Paulo confia que será fiel, não exactamente pela sua força e coragem, mas porque crê que o Senhor não o abandonará.
O Evangelho (Mat 14,13-21) conta que, estava Jesus a ensinar à beira do “mar”, isto é, do lago de Tiberíades, quando lhe vêm dizer que Herodes tinha mandado degolar João Baptista, por ocasião dum banquete. Tudo leva a crer que ficou muito impressionado. Despediu as pessoas e meteu-se sozinho num barco, em direcção a uma praia deserta, para rezar e reflectir. Mas a multidão adivinhou para onde Ele ia e, por terra, dirigiu-se a esse lugar. Jesus não a repeliu. Interessou-se pelos doentes e fez curas, depois falou demoradamente para todos.
Ao cair da tarde, os discípulos interrompem-no: as pessoas estão cheias de fome. Jesus responde: “dai-lhes vós mesmos de comer.” Mas eles têm consigo apenas cinco pães e dois peixes. O Evangelho não entra em agora em explicações de pormenor. Não fala explicitamente de “multiplicação dos pães” (este termo foi introduzido pela Tradição). Conta simplesmente que Jesus mandou que todos se sentassem na relva, “erguendo os olhos ao céu pronunciou a bênção, partiu os pães e deu-os aos discípulos e estes distribuíram-nos pela multidão. Todos comeram e ficaram saciados e, com os restos, encheram doze cestos”.
Este “banquete” fica de algum modo contraposto ao banquete de Herodes, que dera ocasião à morte de João Baptista. É, certamente, sinal da comunhão entre os homens e sinal da alegria do Reino de Deus.
Fica connosco a palavra: “dai-lhes de comer!” Se anunciarmos verdades luminosas, mas ignorarmos a miséria dos pobres, podemos chamar-nos “Igreja”, mas não somos a Igreja de Cristo. Não podemos fazer milagres, mas temos mãos para trabalhar e coração para sentir. Todos os anos morrem à fome 30 milhões de pessoas!
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XIX DOMINGO DO TEMPO COMUM – (Uma homilia do Pe. João Resina)
No séc. IX a.C., o rei de Israel tinha casado com uma princesa estrangeira. Esta tenta extinguir a religião que vinha de Moisés e substituí-la pelo culto dos ídolos do seu povo. Mas Elias, o primeiro profeta de que a Bíblia fala, luta corajosamente contra a nova religião e manda que os judeus fiéis matem os sacerdotes desse culto. A rainha jura que ele vai ter a mesma sorte. Em suma, duas violências em choque, uma e outra apoiadas em ideias de religião. Elias refugia-se no deserto, e depois caminha para o monte Horeb (outro nome do Sinai, onde Deus aparecera a Moisés). Entra numa gruta para passar a noite. Então há uma tempestade furiosa, um tremor de terra violento, um grande incêndio. Parecia o cenário adequado: Deus estaria a mostrar o seu acordo com a dureza de Elias. Depois de tudo isto, Elias ouve “o murmúrio duma brisa ligeira” (ou mesmo, segundo outra tradução possível, “uma voz de silêncio”). Elias começa a entender que é este o verdadeiro estilo de Deus. Mas esta é uma verdade tão nova que só muito mais tarde vai dar fruto.
Elias tinha ouvido dizer que aquele que fixasse o rosto de Deus seria imediatamente fulminado. Por isso, põe uma manta sobre a cabeça antes de sair da gruta e falar com Deus. Foi preciso que o Filho de Deus, Jesus, viesse a nós de rosto descoberto para aprendermos que o verdadeiro amor acaba com o temor (cf.I Jo 4,18).
A primeira leitura (I Reis 19,9-13) levanta uma questão importante: qual é a imagem de Deus que nós temos? É que não basta dizer ou pensar que acreditamos em Deus. É preciso que a imagem que fazemos d’ Ele não seja uma contradição e uma ofensa à sua maneira de ser. Por exemplo, a Inquisição foi feita por “cristãos” – às vezes padres e bispos – contra os que “estragavam a doutrina”. Mas Deus é Senhor do amor, não é Senhor de ódios e teimosias. Os que fizeram a Inquisição serviam o ídolo que tinham inventado, não serviam a Deus. No fundo, eram mais hereges do que aqueles que se propunham julgar, eram profundamente ateus.
Os antigos tinham muitas ideias erradas. Deus formou um povo – o povo eleito – e suscitou no meio dele homens e mulheres que fossem contribuindo, pela palavra e pelo exemplo, para que essas ideias erradas fossem corrigidas.
Uma das ideias erradas era imaginar Deus à maneira dos reis da terra. Os reis da terra mandavam e queriam ser obedecidos, castigavam quem não cumpria, tinham às vezes exigências absurdas. No tempo de Abraão (1800 anos antes de Cristo), ainda havia sacrifícios humanos. Os poderosos sacrificavam crianças, às vezes os próprios filhos, para pedir o fim de calamidades ou uma maior ajuda do céu. A história do sacrifício de Isaac, que vem contada no Livro do Génesis, deve ser uma espécie de parábola, destinada a explicar que os sacrifícios humanos não são aceites por Deus.
Na segunda leitura (Rom 9,1-5), S. Paulo levanta um problema que nem ele, nem ninguém, é capaz de resolver: por que será que o povo eleito, acarinhado por Deus ao longo de 1800 anos, rejeitou Jesus? Creio que seria absurdo falar de um desígnio de Deus. Digamos antes que é sinal da espantosa liberdade dos homens, que Deus decidiu respeitar. Dito isto podemos seguir S. Paulo, que se declarava pronto a aceitar todos os sacrifícios para poder ajudar o seu povo a reencontrar Jesus.
*****************************************************************
XX DOMINGO DO TEMPO COMUM
Os judeus estavam convencidos de que eram o Povo Eleito. Desprezavam os outros povos, pensavam que a sua eleição era garantia de que Deus nunca deixaria que fossem vencidos.
Sem grande resultado, os Profetas criticam esta atitude. Depois, Jerusalém é destruída pelos caldeus e a população levada para Babilónia. A derrota e o exílio são grandes machadadas no orgulho dos judeus, o convívio forçado com outros povos faz abrandar a ideia de que o Povo Eleito é em tudo superior. Aparecem dois novos Profetas que continuam o Livro de Isaías. O “terceiro Isaías” ensina que os homens só podem contar com a protecção de Deus “se respeitarem o direito e praticarem a justiça” e que todo o estrangeiro que procura sinceramente a verdade é acolhido por Deus. “Os seus holocaustos e os seus sacrifícios serão aceites no meu altar, porque a minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”. ( Primeira leitura, Is 56, 1-7).
Era importante que os povos ricos e supostamente civilizados meditassem sobre este texto. A nossa vaidade e suficiência é superior à dos judeus. Talvez não confiemos em Deus, mas confiamos no nosso poder e no nosso saber. A crise económica que está a alastrar como um cancro, as consequências sobre o clima do nosso deprezo pelo ambiente, as guerras e revoluções que se tornaram sem fim põem em xeque este apregoado saber e poder. Mas há pior: estamos a regressar à ideia primitiva de que os poderosos podem impunemente impor a sua vontade aos mais fracos. Assim fizeram a Assíria e Babilónia, assim fez Alexandre, assim fez Roma,…, assim fez a Alemanha em 1939. Assim se faz em 2002. Venha depressa um “quarto Isaías”!
Nas suas viagens apostólicas, S. Paulo dirigia-se em primeiro lugar aos judeus e só depois aos pagãos. Quando escreve a epístola aos Romanos pode fazer um balanço: poucos judeus aceitaram o Evangelho, foi grande o número das conversões entre os pagãos. A frase “da sua rejeição resultou a salvação do mundo” pode significar – ou que Deus tem estratégias que nós não entendemos, – ou, mais simplesmente, que o alheamento dos judeus, e do seu espírito particularista, simplificou a sua acção (há males que vêm por bem…).Mas diz que continua a esperar que um dia os judeus se convertam. Passaram 2000 anos… (Rom 11,13-32).
O Evangelho (Mat 15, 21-28) tem várias coisas insólitas: a recusa de Jesus em atender a cananeia, o argumento de que só tinha sido enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel, o tratamento de cachorrinhos dado aos pagãos, a ideia de que um milagre oferecido aos de fora possa fazer falta aos de dentro,… Há quem opine que o Senhor começa por imitar, com algum exagero, a atitude dos judeus e dos próprios discípulos, para finalmente lhes dizer que não se deve proceder assim. Como quer que seja, é claro que Ele controla a situação: é duro sem ultrapassar o limite, fortalece nesta mulher a boa teimosia, não a laça na revolta.
Anos depois, perante uma situação análoga e uma intervenção de Deus que ultrapassa a sua expectativa, S. Pedro poderá dizer: “Reconheço que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer povo, quem O teme e pratica a justiça é-lhe agradável.” (Act 10,34-35).
A oração tornou-se algo de estranho e difícil para os nossos contemporâneos. Habituámo-nos a mandar e a ter ao nosso dispor maquinismos que respondem imediatamente às nossas acções de comando. Se o carro não pega, mando-o consertar; e se persiste, troco-o. Não estamos habituados a pedir com a humilde persistência da cananeia. Precisamos de quem nos ensine. Precisamos de santos.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XXI DOMINGO DO TEMPO COMUM
“Depois Jesus subiu ao monte, chamou os que Ele queria e foram ter com Ele. Estabeleceu doze para estarem com Ele e para os ensinar a pregar, com o poder de expulsar demónios. Estabeleceu estes doze: Simão, ao qual pôs o nome de Pedro; Tiago, filho de Zebedeu, e João, irmão de Tiago, aos quais de o nome de Boanerges, isto é filho do trovão; (…) e Judas Escariotes, que o entregou. “ (Mt 3, 13-19. Cf Mt 10, 1-4; Lc 6, 12-16; Lc 9, 1; Act 1, 12-14).
Pedro é sempre citado em primeiro lugar na lista dos doze Apóstolos. E a ele disse Jesus: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus; tudo que ficar ligado na Terra ficará ligado no Céu, e tudo que desligares na Terra será desligado no Céu.” (Mt 16, 13-19).
Pedro será a base da Igreja, mas os outros apóstolos recebem também, a confiança de Jesus: “Em verdade vos digo: Tudo o que ligardes na Terra será ligado no Céu e tudo que desligares na Terra será desligado no Céu.” (Mt 16, 19).
A primeira comunidade cristã respeitou esta decisão de Jesus: “Eram assíduos ao ensino dos Apóstolos, à fracção do pão e às orações. Perante os inúmeros prodígios e milagres realizados pelos Apóstolos, o respeito dominava todos os espíritos. Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum”. (Act 2, 42-45).
Houve quem pensasse que a Igreja é uma comunidade de iguais, que se relacionam com Deus pela fé em Jesus Cristo e por a obediência à Escritura, sem necessidade de “chefes” Estes textos contrariam claramente essa ideia. Parece evidente que Jesus instituiu responsáveis e que as primeiras comunidades cristãs reconheciam a missão e a autoridade dos Apóstolos.
Em sentido oposto, julgo que seria um exagero concluir da afirmação de Jesus: “Quem ouve é a mim que ouve (…) (Lc 10, 16) que os Apóstolos eram infalíveis em tudo o que diziam. Seria uma perspectiva como mágica da Igreja, grata a pessoas inseguras, mas que não corresponde minimamente ao estilo de Jesus.
Houve também quem pensasse que a instituição dos Apóstolos ficava limitada àqueles doze, quando eles morressem começaria a comunidade dos iguais. Além de parecer contra o bom senso, esta teoria choca com a prática dos Apóstolos. Nas suas viagens São Paulo fundava comunidades; ao partir designava responsáveis. “De Mileto, Paulo também mandou chamar anciãos de Éfeso. Disse-lhes: (…) tomai cuidado convosco e com todo o rebanho de que o Espírito Santo vos constituiu administradores para apascentardes a Igreja de Deus adquirida por Ele com o seu próprio sangue. (…). E agora confio-vos a Deus e à palavra da sua graça, que tem o poder de construir o edifício e vos conceder parte na herança com todos os santificados”. (Act 20, 17-32). “Paulo, servo de Deus e Apóstolo de Jesus Cristo, (…) a Tito Deixei-te em Creta para acabares de organizar o que ainda falta e colocares presbíteros em cada cidade, de acordo com as minhas instruções”. (Tito 1, 1-5). Por volta do ano 110, Inácio, Bispo de Antioquia, condenado a ser lançado às feras no Coliseu de Roma, escreveu um conjunto de cartas às comunidades cristãs que ia encontrando nessa viagem derradeira, exortando-as a manterem a unidade em torno do respectivo Bispo. A Igreja de Roma conserva os nomes de todos os seus bispos, de Saio Pedro até Bento XVI.
Outra questão é a maneira de exercer o poder na Igreja. São Pedro e os primeiros Papas cingiram-se a questões difíceis, épocas em que os papas se comportaram à imagem dos reis absolutos Caminhamos para o justo termo.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM – Uma homilia do Pe.João Resina
O texto fundamental é o do Evangelho: Jesus anuncia aos discípulos que caminha para Jerusalém ao encontro da morte; Pedro, ou por optimismo ou porque se atreve a dar conselhos (não leves as coisa tão a fio de espada), diz que isso não há-de suceder; Jesus zanga-se e afirma que Pedro é para ele um tropeço. Acrescentam-se outras palavras de Jesus, pronunciadas nessa altura ou em ocasião semelhante. Hoje, é moda pretender que Jesus nunca anunciou que ia morrer e que este passo foi inventado para facilitar a pregação. Bons exegetas contemporâneos, mantêm que o essencial do texto é da boca de Jesus.
A questão que quero levantar é a do sentido do sofrimento para Jesus. Jesus não afirmou, como nas tradições da Índia, que o fundo da experiência humana é desilusão e dor, a única decisão sensata é desejar o nirvana. Nunca disse que, dada a realidade do pecado, o homem deve fugir de toda a alegria e de todo o prazer, não vá contaminar-se. Elogiou a austeridade de João Baptista, mas não era esse ainda o seu estilo.
Vejo Jesus a simpatizar profundamente com os homens e com esta condição humana; a não ter medo da alegria; a viver a austeridade de quem não se preocupa com o secundário. Por outro lado, há em toda a sua pregação a ideia que este mundo está invadido pelo mal, e que o mal tem poder; anunciar o amor e a paz é lutar contra o maligno; combater o mal implica que se arrisque a vida; precisamente Jesus vê o cerco a apertar-se, aceita o desafio e convida os discípulos a imitá-LO. Não morre nem sofre por gosto, aceita a morte como consequência das opções que fez. Sabe que o Pai lhO agradece; e que esta cruz será redentora.
O texto da 1.ª leitura é parecido: Jeremias sabe que ser profeta é arriscar a tranquilidade; mas deixou-se «cativar pelo Senhor», compreendeu que só na fidelidade está a verdadeira alegria.
Na 2.ª leitura S. Paulo pede aos cristãos que se ofereçam a Deus para o que for preciso. A disponibilidade é a essência do «sacrifício».
*************************************************
XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM
Evangelho desta missa: “Se o teu irmão te ofender, vai ter com ele e repreende-o a sós. Se te escutar, terás ganho o teu irmão. Se não te escutar, toma contigo mais uma ou duas pessoas, e que toda a questão fique resolvida entre duas ou três testemunhas.” (Mt 18, 15-16).
Todos sabemos que a dificuldade do Evangelho é ser desconcertantemente simples. Alguém me ofendeu? Começo logo a pensar nas doutrinas que ele segue, e nos erros que contêm. A proposta de Jesus? Vai ao encontro dele e tenta falar-lhe de homem para homem. As zangas entre os seres humanos nem sempre têm base em doutrinas.
É sabido que Jesus disse que os mandamentos se resumem a dois: “amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua inteligência”; e “amarás o teu próximo como a ti mesmo”. E acrescentou que “o segundo mandamento é semelhante ao primeiro”. (Mt 22, 35-40).
A segunda Leitura da missa, de S. Paulo, segue a mesma linha: “Não tenhais dúvidas , a não ser esta: amar-vos uns aos outros. Quem ama o próximo, cumpre plenamente a Lei. De facto, não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só palavra: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da Lei.” (Rom 13, 8-10).
Há séculos que nos apaixonamos pelos dogmas, como se fossem o retrato de Deus. Mas o retrato de Deus encontra-se sobretudo nos irmãos. “Quem ama o próximo, cumpre a Lei.” S. João vai ainda mais longe nesta doutrina: “Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros. (…) Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte. “(I Jo 3, 11-14).
“Passar da morte para a vida” significa aquilo que, mais tarde, a Teologia chamaria “entrar na graça de Deus“. Quem de nós acredita que, para estar na graça de Deus, é preciso amar os irmãos?
S. João diz coisas ainda mais arrojadas: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer Deus, pois Deus é amor.” (I Jo 4, 7-8).
È estranho que, com uma doutrina tão límpida, tenhamos tantas vezes feito da Igreja uma estrutura de poder. É verdade que, na primeira Leitura, ouvimos Deus dizer a Ezequiel que o colocou como sentinela e espera que ele anuncie fielmente a Palavra, que ele será tido como responsável dos pecados dos homens se teve medo de falar. (Ezeq 33-7-9).
Mas uma coisa é anunciar a vontade de Deus com coragem e desassombro, outra coisa é forçar o cumprimento dessa vontade, como no tempo da Inquisição. Pegando num exemplo mais recente: não tenho dúvida de que a Igreja deve ensinar que o aborto é em si mesmo um pecado grave, mas não percebo que os cristãos exijam que as pessoas implicadas em abortos sejam sujeitas a prisão.
É claro que o mundo presente vive em grandes tensões. O que os cristão podem fazer de bom a este respeito nem é lutar contra as ideologias que geram tais tensões. É trabalhar a sério pela justiça, é contribuir para a elevação cultural e social dos grupos mais desfavorecidos, é ajudar novos e velhos, ricos e pobres, a encontrar o amor.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo II”. *****************************************************************
XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tudo se passa como se o tema do perdão fosse tão importante que um domingo não bastasse para o pregar. A liturgia faz uma boa escolha de textos.
A 1ª. leitura é tirada do livro de Ben-Sirá, escrito séc. II a.C., perto já do tempo de Jesus. Afirma que «o rancor e a ira são coisas detestáveis», que «quem se vinga incorrerá no castigo do Senhor».E o autor argumenta: se o homem, que é finito e pecador, condena sem remissão um seu semelhante como se atreve a esperar o perdão de Deus ?. Donde o conselho: «Lembra-te do teu fim e abandona o ódio; pensa na Aliança do Altíssimo e não repares nas ofensas que te fazem». «Não repares nas ofensas que te fazem» é compreender o mistério de Deus e do homem ainda mais profundamente que Jeremias, que tem a certeza de que Deus não mais se lembra dos pecados que perdoou (Jer. 31-34).
«Lembra-te do teu fim», sugeriu a 2ª. leitura desta missa. Trata-se de um texto sereno e profundo, que não fala nem de perdão nem de castigo. Recorda que viver e morrer seria duro se não tivéssemos o Senhor ( e os irmãos ): «Nenhum de nós vive apenas para si mesmo, nenhum de nós morre apenas para si mesmo. Se vivemos, vivemos para o Senhor, se morremos, morremos para o Senhor». Realmente, o perdão só tem sentido por causa do amor e o amor – que vem de Deus ( I Jo. 4, 7) – é comunhão com Deus e com os irmãos.
O Evangelho faz-nos regressar às coisas do dia a dia. Vamos assentar ideias, diz Pedro, chega se eu perdoar sete vezes?. Como é sabido, o Senhor muda para setenta vezes sete. Conta a seguir a parábola do rei e do servo devedor. O rei perdoa uma dívida imensa por pura misericórdia, e o devedor perdoado exige a um companheiro uma quantia irrisória, porque não sabe perdoar. E o rei anula a primeira decisão por amor da justiça. Ben-Sirá tinha percebido esta lógica. Talvez ignorasse que o Rei era capaz de perdoar, logo à primeira, 10.000 talentos.
De tudo isto resulta que o perdão do Evangelho não é um acto de cedência, muito menos de cobardia. É um dom de amor, inspirado no amor de Deus. É um acto de maturidade e de força, não a força da violência, mas a força da fortaleza. Por isso uma das bem-aventuranças é a dos misericordiosos, a par dos que tem fome e sede de justiça.
Nota: Também pode ler este texto em “A Palavra no Tempo I” *****************************************************************