SER CRISTÃO EM TEMPO DE CRISE – 26 de Junho de 2011

1. Quando Jesus nasceu, a sociedade do seu tempo tinha inúmeras razões de sofrimento para a população em geral. Para além do domínio romano, a que estava sujeito o povo judaico, a afirmação dos poderosos, a autoridade escravizante dos sacerdotes e dos doutores da lei, a prepotência do Sinédrio, a par da exclusão dos mais pobres, da marginalização de doentes como os leprosos, do abandono de quantos estavam feridos pela injustiça corrente, tudo isto levava à angústia e à incerteza quanto ao futuro de todo o povo que se considerava ainda o Povo de Deus. Jesus começou a pregar primeiro na Galileia, depois na Judeia e em Jerusalém, anunciou a justiça a que todos tinham direito, proclamou a liberdade como garantia de realização, convidou ao amor, único caminho para a felicidade de todos. Teria Jesus direito a pedir um mundo novo? Jesus anunciou repetidamente o Reino. Muitos pensavam que era um reino temporal, porém, o Reino espiritual anunciado por Jesus supunha também a transformação do mundo. Todos os cristãos estão, com Cristo, envolvidos na transformação do Mundo.

• O projecto de Deus: “Deus amou de tal forma o mundo que lhe deu o seu próprio Filho” (Jo 3, 16). Ao enviar-nos o seu Filho, Deus quer que o mundo seja constituído num quadro de valores que torne a Humanidade lugar de gente feliz. Isto não é possível sem a verdade, a justiça, a liberdade, o amor, autênticos pilares da paz (cf. João XXIII P.T. 35).

• Um projecto de salvação: Jesus “não vem para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo por Ele” (Jo 3, 17). O sonho de Deus é de salvação para todos. O nosso Deus não é um Deus que castiga e condena mas, enquanto Pai, assim chamado por Jesus Cristo, quer que todos os seus filhos sejam salvos. Por muitos erros que os homens cometam, Deus tem sempre um projecto de salvação.

• A oração de Jesus: “Pai santo não te peço que os tires do mundo, peço-te que os livres da maldade” (Jo 17, 15). Na oração sacerdotal de Cristo, Ele preocupa-se com os seus discípulos. Sabe que estão num espaço adverso, mas é precisamente para este mundo que é urgente enviar mensageiros que levem “a Boa-Nova aos pobres, a libertação aos oprimidos, a alegria aos que sofrem” (Lc 4, 19). A oração de Cristo é salvífica, leva consigo a promessa da salvação.

• A missão do cristão: “Pai Santo como Tu me enviaste ao mundo também eu os envio agora ao mundo. Santifica-os na verdade” (Jo 17, 18). Jesus não quer os discípulos longe das realidades terrestres, quer que, numa nova Encarnação, eles sejam para o mundo os portadores do Evangelho.

• Vencer a tentação espiritualista: “Recebereis o Espírito Santo e sereis minhas testemunhas em toda a parte” (Act 1, 8). Quando Jesus, no Monte da Ascensão, deixou os seus discípulos, pediu-lhes para que dessem testemunho d’Ele. Vieram anjos dizer-lhes que não ficassem a olhar para o céu. Os discípulos compreenderam e prepararam-se para levar a Boa Nova até aos confins do mundo.

É neste enquadramento que se compreende a relação dos cristãos com o mundo. Não podem voltar as costas ao que acontece no seu tempo, mas têm de “tratar da ordem temporal e orientá-la segundo Deus para que progrida e assim glorifique o Criador e Redentor” (LG 31). Não foi por acaso que Paulo VI na sua Encíclica sobre a Evangelização, soube dizer que os cristãos “devem ser solidários com os mais pobres e viver em comunhão de vida e de destino com o povo de que fazem parte” (EN 21).

2. A Conferência Episcopal Portuguesa, numa Nota Pastoral recente, alerta os cristãos para a sua responsabilidade em tempo de crise. O que está em questão não é a salvação individual de cada um, de quem conseguiu prevenir as dificuldades, amealhando ou criando amigos. A crise é de todos, todos são responsáveis por ela. O problema não é apenas dos governantes. É de qualquer cidadão. O exercício de cidadania exige ao cristão ser responsável no tempo difícil em que vivemos. Os Bispos alertam para quatro apontamentos que merecem a reflexão profunda de cada cristão, reflexão essa convertida depois em mudança de vida.

• O problema do “bem comum”: a sociedade actual está marcada pelos egoísmos, individuais ou de grupo. Infelizmente cada um só pensa em si próprio, nos seus interesses, no que lhe convém. Quando se preocupam com os outros é apenas com os problemas do grupo de que fazem parte, seja grupo político, grupo social ou mesmo grupo religioso. É urgente que governantes e governados se preocupem com o “bem comum”. O que está em questão na sociedade não é a minha salvação pessoal, mas a salvação de todos numa comunidade que se transforma.

• A necessidade do “realismo”: há imensa gente que nada alterou ainda no seu padrão de vida. Chega mesmo a dizer que a crise não é consigo. Ora, a crise foi causada por todos, e temos de ser todos a enfrentá-la com coragem e determinação. Alterar os padrões de vida, conhecer os problemas, analisar as causas, descobrir soluções, não é apenas tarefa dos governantes, é cuidado a ter por qualquer cidadão. Os cristãos têm de estar na primeira linha no enfrentamento dos problemas sociais que nos atingem.

• Os gestos de “solidariedade”: o amor tem de se inventar. O cristão reconhece no outro a pessoa de Jesus. É preciso dar-lhe um copo de água, um pão para comer, uma roupa para vestir, um sorriso para confortar. Esta linguagem do capítulo 25 de Mateus convida o cristão a descobrir formas de amor. Nos seus conhecidos, no seu prédio, no seu bairro, há pessoas em grande sofrimento porque a crise os atingiu. À medida de cada um, os gestos solidários inventam empregos, criam respostas pontuais, descobrem saídas impensadas. É o amor que abre portas que ninguém esperava. O cristão define-se pela sua capacidade de ser solidário.

• A recusa de “falsas propostas”: no mundo actual há situações concretas que são aparente salvação para minorias. É o caso da corrupção, da obsessão pelo lucro, da luta pelo poder. Os cristãos têm o dever de ser críticos perante tudo isto. Não podem admiti-lo na vida pessoal, devem fazer tudo para que não aconteça na vida colectiva, de pequenos ou grandes grupos. É urgente uma sociedade que se renova nos valores éticos indispensáveis à felicidade de todos.

As tentações universais são sempre o ter, o poder e o prazer considerados valores absolutos. Os cristãos têm o dever de substituir o ter pela partilha, o poder pelo serviço e o prazer pela generosidade, mesmo com sacrifício. É uma sociedade nova que temos pela frente. É tempo de, dando-se todos as mãos, mesmo com sacrifício, construir-se o mundo novo.

3. A nossa Comunidade Paroquial procurará também viver de outra maneira este tempo de crise. Se há uma responsabilidade pessoal para cada um, há também uma responsabilidade para cada comunidade cristã. Seria impensável que, pedindo a todos um sacrifício, a comunidade enquanto tal não descobrisse formas novas de amar os que estão em sofrimento. Permitam-nos, por isso, quatro propostas extremamente simples:

• Austeridade: na vida pessoal é cada um que define aquilo a que renuncia para não ter desperdícios que seriam desrespeito para com os que estão em dificuldade. E na vida colectiva? Quais as formas de austeridade? Coisas como apagar as luzes, não utilizar o elevador, aproveitar bem o tempo de trabalho, estar disponível para todos, e tantas outras coisas são expressão de uma austeridade vivida por todos no grupo cristão que constituímos.

• A atenção: cada cristão tem de ser vigilante para se dar conta das necessidades dos problemas dos outros. Foi uma família em que marido e mulher caíram no desemprego, uma outra em que a redução do salário compromete os estudos dos filhos, uma terceira que tem idosos a seu cargo e os medicamentos subiram de preço. São também os que se aproximam da comunidade para pedir para resolver um problema pontual, para aviar uma receita ou comprar mantimentos para o fim-de-semana. Os cristãos têm de ter os olhos abertos para ver, para parar, para se aproximar, para servir.

• A partilha: é esta uma especial característica dos cristãos. Sabem que há maior alegria em dar do que em receber, mas sabem também que a dádiva fez felizes os que estavam em situações emergentes de extrema gravidade. Saber dar, por iniciativa pessoal ou através das organizações da paróquia, é gesto de partilha que tem sempre recompensa.

• A esperança: os cristãos são homens e mulheres de esperança. Sabem que todas as crises serão vencidas porque Deus acabará por semear generosidade na grande comunidade de que fazemos parte.

Dentro de dias começamos a partir para férias. Que estas quatro palavras austeridade, atenção, partilha e esperança nos ajudem a fazer um programa diferente em que o amor tem o primeiro lugar.

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