1. João Paulo II quis consagrar o segundo domingo da Páscoa à Misericórdia de Deus. Depois de celebrar-se a Páscoa, em que o amor de Deus foi vivido até às últimas consequências com a Paixão e Morte de Jesus, essa relação de amor divino não podia perder-se. E, então, os cristãos são convidados, em tempo de Ressurreição, a “saborear” a Misericórdia de Deus revelada no seu Filho, Jesus Cristo. Com razão, o quarto Evangelho, na conversa com Nicodemos, Jesus soube dizer-lhe “Deus amou de tal forma o mundo que lhe deu o seu próprio Filho” (Jo 3, 16), num acto de misericórdia sem precedentes. Paulo aos Filipenses retomará o tema quando diz que “Jesus sendo de natureza divina se aniquilou a si mesmo tomando a forma de servo e obedecendo até à morte e à morte de cruz. Por isso Deus o exaltou e lhe deu um nome que está acima de todo o nome” (Fil 2, 8-9). À Misericórdia de Deus significada na crucifixão do Seu Filho, correspondeu o mesmo Deus com a sua glorificação na Ressurreição. A Misericórdia é a síntese da Morte e da Ressurreição no mesmo projecto de Deus, um projecto de amor. João Paulo II, no segundo ano do seu pontificado, para lá de uma encíclica sobre o Redentor, convidou a Igreja toda a reflectir sobre a Misericórdia do Pai. É a encíclica Dives in Misericordia.
• A Misericórdia é acolhimento e compreensão sem limites. Não há ninguém que não precise de ser compreendido, qualquer que seja a sua história ou o seu problema.
• A Misericórdia é perdão. Na perspectiva cristã, é-se convidado a perdoar sempre, qualquer que seja a ofensa recebida. É difícil, o que requer a confiança ilimitada num Deus que salva.
• A Misericórdia é compaixão. Muito mais do que ter pena do outro, compadecer-se implica levar o peso do outro, fazer seus os problemas que ele tem, ficar perto para estar presente em todas as angústias.
• A Misericórdia é reconciliação. Só os corações disponíveis são capazes de lançar as pontes da unidade para lá de todas as divisões.
• A Misericórdia é amor. A relação com os outros, à semelhança da relação com Deus, alicerça-se na capacidade de amar sem condições. Assim, o amor torna-se universal e privilegia os mais pobres ou os que mais sofrem.
A esta preocupação de introduzir na Igreja a festa da Misericórdia, certamente não é alheia a experiência de Santa Faustina Kowalska, religiosa polaca, que teve revelações extraordinárias sobre a Misericórdia Divina vivida em Jesus Cristo na sua dolorosa Paixão. De facto, Jesus não teria podido dar à humanidade uma vida nova pela Ressurreição se não tivesse passado pela sua Paixão Redentora.
2. Quem percorre a Sagrada Escritura, com facilidade compreende que o Deus dos cristãos é um Deus de amor. Já no Antigo Testamento Deus se revela rico em misericórdia: aos primeiros pais anuncia a salvação, em Abraão institui um povo de uma só fé, em Moisés oferece a libertação, nos profetas, uma garantia de esperança; tudo isto nada mais é do que caminhos de misericórdia sem limites. No Novo Testamento quer na referência a Deus, quer nas atitudes de Jesus Cristo seu Filho único, cada página respira a Misericórdia divina para com os pobres, os marginais, os infelizes, os pecadores, para com todos.
• A Misericórdia de Deus Pai tem a sua expressão máxima na entrega do seu Filho para a salvação de todos os homens. Jesus Cristo não foi poupado e abandonou-se completamente à vontade do Pai. As últimas palavras de Jesus na cruz são um grito de abandono redentor: “Tudo está cumprido.” (Jo 19, 30).
• A parábola do Filho Pródigo revela um pai cheio de misericórdia. Aquele filho mais novo, depois de ter esbanjado a fortuna, é acolhido pelo pai que lhe faz uma festa porque aquele filho estava perdido e encontrou-se, estava morto e ressuscitou. É o paradigma da misericórdia total.
• Na relação com as multidões Jesus tem pena de quantos são como ovelhas sem pastor. Dá pão a quantos estão com fome, depois de há três dias o ouvirem na montanha, privilegia os que ninguém quer e ninguém ama, os coxos, os cegos, os paralíticos, os leprosos.
• A Misericórdia de Jesus não tem fronteiras: Ele preocupa-se com as crianças, simples e inocentes, come com os pecadores e os publicanos, excluídos no convívio da cidade. Jesus reintegra os leprosos e ressuscita os mortos. Simplesmente porque há gente que sofre e merece ser atendida.
• Até aos discípulos que o negam, o abandonam ou o traem, Jesus tem palavras de misericórdia e de perdão. Se um deles se não salvou foi apenas porque não entendeu as palavras da misericórdia de Jesus.
Misericórdia é sem dúvida a palavra-chave dos gestos e das palavras de Jesus Cristo. O que Ele disse e o que Ele fez, desde o nascimento até à morte na cruz, e sobretudo na Ressurreição, tudo foi a expressão da misericórdia do Filho de Deus que veio à terra para salvar todos os homens.
3. A vida cristã deveria ser pautada pelas obras de misericórdia. Antigamente faziam parte da catequese de infância e, divididas entre corporais e espirituais, papagueava-se uma linda cantilena cheia de ternura “dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, dar pousada aos peregrinos…”, era uma litania de amor. Os cristãos eram convidados a esquecer-se de si próprios, porque havia outro para quem a misericórdia era salvadora. Educar para a misericórdia a viver por cada cristão constitui um verdadeiro desafio neste tempo em que a solidariedade se tornou uma exigência no viver comum de todos os cidadãos. A solidariedade é uma expressão da misericórdia que hoje é indispensável para a salvação concreta de muitos.
• Há quem precise de bens indispensáveis, quem tem fome, quem tem sede, quem está nu. É urgente descobrir a forma de ir ao seu encontro para responder às necessidades básicas pelo menos para a sua sobrevivência.
• Há quem esteja só e para quem a companhia e os cuidados são forma de redenção. Visitar os doentes, em grande sofrimento, visitar os presos em solidão violenta, acolher os sem-abrigo marginalizados por todos, são obras de misericórdia que ressuscitam quem a sociedade está a deixar morrer.
• Há quem precise de apoios de outra natureza. Os ignorantes, os que erram, os que hesitam nas posições a tomar, todos são pessoas a serem ajudadas. Não são obras de misericórdia corporais, mas os gestos de amor atingem muita gente que precisa de uma presença, de um estímulo, de um dar a mão para se sentir o caminho de uma vida nova.
Neste domingo da Misericórdia, recordar as 14 obras que foram ensinadas aos cristãos como expressão concreta do amor, é um exercício espiritual de maior valia. Se Deus tem Misericórdia por cada um de nós, nós temos o dever de ter misericórdia uns para com os outros.
4. Na nossa comunidade paroquial estamos a celebrar a Novena da Misericórdia. Consciente da Misericórdia que Deus tem para cada um de nós, é bom que cada um ensaie gestos de misericórdia para com os outros.