DESAFIOS PARA UMA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ – 30 Dezembro de 2012

1. O ser humano é espiritual. Dotado de inteligência, de vontade e de sensibilidade, nunca é feliz quando se centra apenas nas coisas materiais. A espiritualidade faz parte da sua vida. Por ela, o ser humano é diferente de todos os outros seres. A espiritualidade, porém, tem três dimensões: a da cultura, a das relações e a da transcendência. Pela cultura aprofunda-se o conhecimento de todas as coisas; pelas relações estabelecem-se laços de afectividade que permitem a aproximação a todas as pessoas; pela transcendência vai-se ao encontro de Deus. É na procura do transcendente que o ser humano encontra o sentido da sua vida. Se se quer chegar mais longe, o contacto com o transcendente permite a aproximação total a Deus em que se acredita. Na religião cristã, a este movimento de procura de Deus, responde Deus com um amor total. “Deus amou de tal forma o mundo que lhe deu o seu próprio Filho” (Jo 3, 16). Mais ainda, “se alguém Me tem amor, Nós viremos a ele e faremos nele morada” (Jo 14, 23). A religião, nesta comunhão total com Deus que nos fez seus filhos adoptivos, é então a expressão máxima do transcendente na nossa espiritualidade. Neste tempo de Natal celebra-se precisamente o nascimento de Jesus, o Filho de Deus que veio ao mundo, um Deus que se fez próximo, para que o ser humano d’Ele se aproxime e com Ele estabeleça uma comunhão total. Na liturgia destes dias aparecem, então, os desafios da espiritualidade cristã.

• O martírio de Santo Estêvão, que se celebra a 26 de Dezembro, convida à fidelidade radical. O primeiro mártir cristão, ao dar a vida louvando a Deus e perdoando aos inimigos (cf. Act7), chama a uma entrega sem condições ao projecto que Deus tem para cada um. O cristão sem ser mártir pode ser fiel na alegria do abandono constante à vontade de Deus.

• S. João Evangelista, com festa a 27 de Dezembro, pede que a Palavra viva seja a referência para todas as opções. De facto, não se pode ser cristão sem seguir os apelos da Palavra de Deus. Ao ler o Novo Testamento tem-se consciência de que é Jesus a falar. Mais do que um jogo de afectos, é um compromisso de vida que a Palavra exige. Por isso, o Apóstolo João, em Patmos, pedia às comunidades que evangelizara uma renovação constante (cf. Ap 2 e 3). Em pleno Natal esta chamada à renovação pela Palavra é marca da espiritualidade cristã.

• Os Santos Inocentes são recordados a 28 de Dezembro. Pode ser difícil conhecer historicamente este episódio do Evangelho (cf. Mt 2, 16-18) contado por Mateus. No entanto, ele reveste-se de uma tragédia tocante. É o Anjo que avisa José do perigo que o Menino corre, o que o leva a fugir com ele e sua mãe para o Egipto; é a arrogância de Herodes que não se coíbe de mandar matar as crianças com menos de 2 anos; são as mães de Judá que choram os seus filhos mortos. Esta trilogia marcará sempre a vida humana no tempo do sofrimento. À violência dos poderosos e ao pranto das vítimas, contrapõe-se a simplicidade daqueles que aceitam iniciar uma vida nova.

• A Família de Nazaré é celebrada no domingo depois do Natal. Aqui, a imagem de simplicidade de Maria, de José e de seu Filho, na sua vida normal em Nazaré, constitui um modelo de família a imitar. O Menino cresce em idade, em sabedoria e graça, os pais preocupam-se com ele e todos sobem ao templo para prestar culto a Deus. Todas as famílias são chamadas a viver o amor, a servir a vida, a louvar a Deus. Esta simplicidade poderá ser síntese de todos os Natais onde o amor tem lugar na relação entre os humanos e também na relação com Deus.

Outras lições poderiam colher-se ao reflectir sobre a apresentação de Jesus no Templo, o registo do seu nome, a aparição dos Magos. O Natal de Jesus até na liturgia diária traz recados para a renovação profunda da vida dos cristãos.

2. No dia primeiro de Janeiro celebra-se a festa de Santa Maria, Mãe de Deus. A figura de Maria está no centro da liturgia do Natal. Desde os primeiros dias do Advento que ela vai sendo revelada aos crentes, como referência forte em todas as exigências do ser cristão. Quer o mistério da Anunciação, quer a visitação à sua prima Isabel, quer o caminho para Belém, quer o nascimento do Menino, tudo está revestido de uma verdade muito forte que marca o carácter de Maria. Também por isso foi escolhida para Mãe de Deus. Podem referir-se apenas algumas notas que nos dão a conhecer Maria e, em todas elas, se fica com a ideia de que é este o único caminho para o cristão consciente e comprometido.

• A atenção aos acontecimentos – aquela jovem mulher, não tendo mais do que 15 anos, conhecia as Escrituras, acompanhava a esperança do Messias, e apercebeu-se na conversa com o Anjo de qual era o projecto de Deus para ela. Não andava distraída na sinagoga ou em sua casa: entendia a esperança do povo de Israel.

• A capacidade de discernir – surpreendida com a proposta que lhe era feita pelo Arcanjo Gabriel, quis entender o que lhe era pedido. Pôs objecções fundamentadas, quis ter sinais que davam verdade ao pedido que lhe era feito. Este discernimento não foi fácil. Compreendeu, porém, que para Deus não havia impossíveis.

• A aceitação de riscos – também neste aspecto Maria teve uma coragem invulgar. Seria incompreendida por José que pensou abandoná-la (cf. Mt 1, 19-20), provavelmente iriam julgá-la, também, os seus conterrâneos. Porém, depois de entender que era um apelo de Deus, aceitou com coragem a vocação que o Senhor lhe destinara.

• Um sim sem condições – esta foi a atitude de Maria, quando disse “eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim o que tu dizes” (Lc 1, 38). Foi o sim incondicional à vontade de Deus que marcou, a partir de então, toda a sua vida.

• A caridade para com o mais próximo – depois de ter aceitado Jesus no seu seio, Maria foi ao encontro de Isabel, que era quem mais precisava dela, porque esperava o menino, João, e estava já no sexto mês. A palavra de Isabel e o Magnificat de Maria são a expressão mais bela de uma caridade sem fronteiras, verdadeiro amor a Deus e aos irmãos.

• O nascimento do Menino – esta foi uma lição de simplicidade que Maria oferece a toda a gente. Cumprir um dever cívico não a impediu de acolher Jesus, apesar do desconforto de uma manjedoura, onde o colocou ao nascer.

Estas e muitas outras lições os cristãos recebem de Maria neste tempo de Natal, reconhecendo-a como Mãe de Deus, Mãe da Igreja, Mãe de todos os homens.

3. O Dia Mundial da Paz constitui também um desafio à espiritualidade. Só um coração que se deixou invadir dos valores cristãos pode ser de verdade um obreiro da paz. Já João XXIII dizia que a construção da paz tem quatro pilares: a verdade, a justiça, a liberdade e o amor. Mas só um coração bom se predispõe a dialogar com os outros para encontrar um caminho de perdão, de reconciliação e de paz. É neste sentido que a mensagem de Bento XVI para este ano tem como tema “Bem-Aventurados os Obreiros da Paz”. O que está em questão é mesmo a felicidade para todos. Sem paz as pessoas não podem ser felizes. Agora, se pode considerar-se a paz um dom de Deus, ela será sempre, porém, obra do homem. Bento XVI cita exaustivamente a Pacem in Terris, Encíclica de João XXIII, afirmando claramente que ela não é um sonho nem uma utopia: a Paz é mesmo possível. Importa, então, que os cristãos sejam verdadeiros obreiros da paz.

• Obreiros da paz são aqueles que amam, defendem e promovem a vida na sua integridade.

• Construir o bem da paz exige novos modelos de desenvolvimento e de economia.

• Educar para a paz supõe uma cultura específica de que são responsáveis a família, as escolas e todas as instituições.

• Urge promover a pedagogia do obreiro da paz com os valores da tolerância, da benevolência, do perdão, da reconciliação, do amor concreto em todas as situações da vida.

Construir a paz na família, no trabalho, nos meios sociais, nas intervenções políticas e económicas, é também expressão da espiritualidade cristã que, relacionando-se com Deus, convida também todos os homens de boa vontade a trabalharem pelo bem comum.

4. Ao falar de espiritualidade muitos pensam apenas na oração. Não é, porém, assim. Sendo fundamental para a relação do cristão com Deus, não deixa de o ser para o compromisso do cristão no mundo. A oração é, então, um caminho para este compromisso.
Desejo a todos os cristãos da nossa comunidade um Bom Ano de 2013.

Comments are closed.