Integrado no ciclo de conferências subordinado ao tema Fé e Cidadania, que está a decorrer na Paróquia, inserimos o text0 que nos foi facultado pelo conferencista Prof. Dr. José Luís Castanheira, referente à sessão realizada em 2013/02/21
FÉ E COMUNIDADE HUMANA – A convivência e o diálogo. Construir a Cidade.
Muito obrigado, ao Instituto Diocesano de Formação Cristã, na pessoa do Cónego António Janela, pelo convite que muito me honra, para estar convosco.
Sou médico aposentado há um ano. Dediquei-me à saúde pública. Agora, apenas lecciono no I.S.C.S. Egas Moniz. Tenho 64 anos, estou casado vai para 42; tenho três filhos e dois netos.
Este convite foi uma excelente oportunidade para aprofundar a reflexão sobre a temática Religião e Cidadania. Foi com muito interesse que preparei esta intervenção e a partilhei com alguns amigos a quem agradeço os comentários e sugestões que fizeram o favor de me facultar.
Não irei comentar em detalhe o Capítulo II da Gaudium et Spes, mas apenas propor algumas reflexões sugeridas pela sua releitura.
Graças a Deus, sou crente carregado de interrogações e inquietações. Considero que nosso testemunho de Fé, particularmente nas sociedades ditas mais desenvolvidas, parece insuficiente para interpretar e concretizar os testemunhos bíblicos e a luz que recebemos do Concílio Vaticano II. Muitos de nós parecemos desatentos aos sinais dos tempos o que contribuirá para o manifesto alheamento de tantos irmãos nossos face ao Evangelho.
Nos últimos 50 anos, muitos de nós, entre os quais se contam também elementos do episcopado e padres, temos gasto demasiadas energias com doutorices sobre o Concílio e a Igreja e vivido distraídos face ao essencial – viver em conformidade com o Evangelho! De acordo com a Mensagem do nosso Papa para esta Quaresma, importa que a Fé que professamos inspire uma prática militante ao serviço do Amor.
Permitam duas notas prévias:
Vivemos num Mundo em que há cada vez mais pessoas que vivem cada vez mais tempo e interagem cada vez com maior intensidade;
Existem cada vez mais profissionais e organizações promotores da comunicação e da convivência humana. Aliás, em alguns países parece mesmo haver uma indústria da felicidade que apesar da agressividade do seu «marketing» não se afigura muito eficiente.
O desafio não será tanto a promoção da convivencialidade e do diálogo, mas amar o Absoluto sobre todas as coisas e amar o outro como a nós mesmos, na fidelidade ao espírito do Evangelho e aos ensinamentos do Concílio, nomeadamente em A Igreja no Mundo contemporâneo, através de vivências e experiências de proximidade em comunidade.
No Antigo Testamento, comunidade era Povo e o povo sobrevivia em comunidade. Mais tarde, durante séculos, foi Reino. Hoje, diz-se Cidade, entendida como centro de trocas. Mas, porque não aldeia? Tanto mais que convivência e diálogo, até seriam mais fáceis onde todos são primos e primas, isto é, onde todos se reconhecem com origem comum e onde estão presentes laços de pertença. Porém, não aldeias entendidas como paróquias isoladas, mas como comunidades abertas. Acredito que João XXIII e os seus seguidores mais fiéis aspiravam a uma aldeia global de povo redimido ao encontro de Cristo cósmico, plenitude do viver humano.
Neste tempo que é o nosso, os sinais sugerem que a nossa aldeia global está:
dominada, ou pelo menos decisivamente influenciada, pelo poder financeiro ao arrepio do desenvolvimento das pessoas e da pessoa toda;
alienada a tecnologias com que muitos pretendem tornar obsoleta a transcendência e negar o mistério presente na vida;
sob a ditadura dos «media», segundo os quais o que parece é.
Nas democracias liberais, os poderes da cidade, ancorados na trilogia – liberdade, igualdade e fraternidade, pretendem-se respeitadores da dignidade humana. Contudo, alicerçada na perspectiva do super-homem, aquela que pretende ter morto Deus e se proclama racionalista e transparente. A nossa Fé perspectiva um outro modelo de cidade, ou melhor de aldeia global que importa testemunhar.
Ainda que se trate de pessoas com características, necessidades ou interesses comuns, comunidade é muito mais que colectividade. É um conceito complexo, frequentemente embrulhado em ideologias materialistas e adulterado facilmente em culturas que recusam qualquer dimensão transcendental.
O conceito de comunidade é dinâmico, multifacetado e intersubjectivo. Apela às concepções de pessoa e ao sentido que cada um dos seus membros dá à vida. Em concreto, que relação estabelecemos entre comunidade e sociedade? E entre comunidade e Estado?
As pessoas são influenciadas pelos seus grupos de pertença, todos o sabemos. Todavia, as comunidades brotam e organizam-se dinamizadas por pessoas onde sopra o Espírito, porque movidas pelo amor, ainda que disso se não apercebam, os tais homens e mulheres de boa vontade capazes de promover a partilha com justiça, garantir a obediência e exercer autoridade ao serviço de todos.
O essencial é o que nos une aos outros com profundidade. Por isso, parece imprescindível que a família seja conservada como a comunidade primordial. Na Europa, nomeadamente entre nós, a destruição lenta e persistente da experiência de família, substituída pelo Estado providência, será a causa primeira da nossa perca de sentido de comunidade e das dificuldades reais em ansiar pela aldeia global.
Inerente à ideia de comunidade está a de desenvolvimento. Ao longo do último século, as dificuldades em apreciar objectivamente o desenvolvimento da pessoa e de todas as pessoas facilitou a confusão entre crescimento, sobretudo económico e desenvolvimento. Contudo, nos últimos vinte anos tem-se registado o emergir de dimensões cada vez menos materialistas. Por exemplo, os chamados objectivos de desenvolvimento do milénio adoptados pela OMS (por exemplo, erradicação da fome e da pobreza, controlo da iliteracia ou da exploração das mulheres e das crianças).
Por outro lado, parece haver cada vez mais investigação na busca de indicadores de adaptação e inclusão, bem-estar, qualidade de vida e mesmo felicidade. São expressão de uma evolução também conceptual que nos poderá aproximar de uma conscientização comunitária que se pretende planetária.
Dentre os indicadores de desenvolvimento comunitário, alguns deveriam merecer-nos atenção privilegiada, pois expressam o reconhecimento das várias facetas da dignidade humana. Exemplos: literacia, inclusão, acesso a bens essenciais, não-violência. Dentre esses indicadores, considero que as taxas de desemprego são relevantes.
À luz da nossa Fé, um dos sinais dos tempos mais inquietante, nomeadamente em comunidades cristãs, é o desemprego que constitui autêntico pecado organizado. Na orla norte do Mediterrâneo e no Sul da Europa, quem tem ocupação com frequência tem de mais e é cada vez maior o número dos que não têm emprego.
Políticos e sindicalistas, à esquerda e à direita, revelam-se incapazes de enfrentar o desafio e com frequência são parte do problema e incapazes de formatar questões genuínas e pertinentes.
Não existe comunidade quando não há partilha, alimentada por relações de proximidade e laços de pertença. Não há desenvolvimento humano sem atender as legítimas necessidades da pessoa toda e de todas as pessoas. Nestes tempos que são novos, importa que nós cristãos sejamos capazes de partilhar o trabalho que há para fazer (cada vez menos) e de dinamizar a concretização de oportunidades para todos se sentirem socialmente inseridos em actividades realmente úteis à comunidade.
E, a Igreja? Entendemo-la como uma comunidade de comunidades ou como comunidades a caminho da Comunidade? Recordo a heterogeneidade da presença dos cristãos na Terra: a crescer em África e na Ásia; com maior densidade nas Américas, com predomínio do Brasil; em declínio, na densidade e na participação na Europa.
Permitam que recorde que nos Actos dos Apóstolos existem regras muito explícitas de fazer comunidade. Por exemplo:
Actos 2,
44 E todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum.
45 Vendiam as suas propriedades e os seus bens e distribuíam o preço por todos, segundo a necessidade que cada um tinha.
Actos 4,
33 E os Apóstolos, com grande coragem, davam testemunho da ressurreição de Jesus Cristo nosso Senhor, e era grande em todos eles a graça de Deus.
Também S. Paulo nas Epístolas nos apresenta directivas muito pragmáticas. Por exemplo:
I Coríntios 13,
4 A caridade é paciente, é benigna; a caridade não é invejosa, não é temerária; não se ensoberbece.
5 Não é ambiciosa, não busca os seus próprios interesses, não se irrita, não suspeita mal.
6 Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade.
7 Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.
Na minha experiência de vida, na busca de uma cidadania participativa, há dois episódios do Evangelho que me inquietam: o designado por jovem rico (Lucas 18, Mateus 19 e Marcos 10) e o tributo a César (Lucas 20, Mateus 22 e Marcos 12).
Sem despojamento e espírito de pobreza, concentrados no nosso egoísmo e no mais ter, nem individual nem colectivamente, conseguimos a felicidade que a santidade alcança.
Neste tempo de globalização, um dos problemas que nós europeus devemos enfrentar é ao longo da História, termos sido capazes de nos apoderar de mais do que seria de todos, infelizmente muitas vezes utilizando como justificação o cristianismo. Movidos pelo valor da liberdade e na ânsia da propriedade privada, nos últimos dois séculos, com demasiada frequência se ignorou que a igualdade fundamental entre todos os homens deve ser cada vez mais reconhecida, uma vez que dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos têm a mesma natureza e origem; e, remidos por Cristo, todos têm a mesma vocação e destino divinos. ( in A Igreja no Mundo contemporâneo, 29)
Neste século, é inevitável um ajustamento global. Não acredito que se trate de uma crise financeira com repercussões sociais, pois graças a Deus nada vai voltar ao que foi. Assim, para cada um de nós, em concreto, a proposta de Cristo vai ser cada vez mais um desafio. No processo evolutivo, a caminho da Igreja de Cristo, somos chamados a fazer comum-união cada vez mais com a capacidade de amar que somos e não com os bens materiais que temos. Esta caminhada para uma aldeia global mais justa e fraterna pressupõe a concretização de projectos de desenvolvimento.
Como católicos, somos interpelados ao diálogo inter-religioso que reclama uma conversão ao essencial da nossa Fé, a prática da Caridade. Não se trata mais de promover a adopção de rituais religiosos ancestrais ou de levar à adesão de modelos éticos de matriz europeia. O desafio é o testemunho genuíno do amor e da justiça.
Neste tempo que é o nosso, em contexto cultural específico e sempre iluminado pelo Espírito, portanto impossível quando se nega a transcendência, torna-se fundamental a forma como cada cristão, em cada circunstância concreta, dá a Deus o que é de Deus e a César o que é de César.
Gostaria de terminar, com uma palavra de esperança que a todos compromete, retirada da Constituição Pastoral (in A Igreja no Mundo contemporâneo, 31):
Podemos legitimamente pensar que o destino futuro da humanidade está nas mãos daqueles que souberem dar às gerações vindouras razões de viver e de esperar.
Muito obrigado.
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Comentário de Maria José e António Cardoso Ferreira:
Gostámos de ler o teu texto – um conjunto de olhares, reflexões e perguntas abertas à partilha em torno do mundo contemporâneo e da própria Igreja nele inserida. O que escrevemos não são propriamente críticas e propostas, mas sim o eco do teu texto em nós, o qual passou por reflexões, conversas e também pela releitura do capítulo II da Gaudium et Spes.
Enfim, faz de conta que estávamos presentes na reunião e dizíamos isto:
A palavra-chave e motor de mudança para a Comunidade Humana, a Fé e a evolução do mundo e da própria Igreja, é essencialmente uma – o Amor.
O Amor que somos desafiados a dar e receber, ao longo da vida, na relação com as pessoas que nos são próximas, com todas as comunidades que conhecemos, com a natureza, com o universo.
O Amor que, partilhado com os outros, nos une a Deus que é a sua essência.
O Amor que se projeta na construção livre e solidária de obras, sem as quais a Fé se atrofia e morre.
O Amor/despojamento dos teres e poderes, com que pervertemos as relações com os que nos são próximos.
O Amor, cimento da comunidade, capaz de gerar aceitação e complementaridade entre pessoas diferentes mas não desiguais.
O Amor-coragem-e-práxis, que denuncia as injustiças, anuncia a libertação aos oprimidos e se compromete no fazer mudanças.
O Amor saboreado com prazer em tudo o que de belo e bom nos é oferecido e nós podemos partilhar e desenvolver, gerando alegria, paz e comunhão (comum-união).
A questão fundamental, que nos parece resultar de tudo isto, é portanto:
– cada um de nós, cada família, cada paróquia, cada estrutura da Igreja, cada comunidade, aldeia, cidade, nação, ou o próprio planeta globalmente, que podemos fazer para nos despirmos de egoísmos, opulências, discriminações, fanatismos, ódios, manutenção de desigualdades, normas obsoletas e tudo o mais que não deixe entrar o Amor na vida das pessoas e comunidades, pois é preciso e urgente que o Amor circule entre nós e que sejamos cada vez mais próximos uns dos outros.