1. A Igreja tem o dever de estar presente no meio do mundo, para o transformar, para poder transmitir-lhe os valores indispensáveis à felicidade de todos os homens. Esta é uma tarefa difícil que, ao longo dos séculos, tem sido motivo de muitos sofrimentos e das maiores contradições. Nos primeiros séculos do cristianismo multiplicaram-se as perseguições. A sociedade judaica que condenou Jesus Cristo à crucifixão não aceitava as comunidades cristãs. Pedro e os outros apóstolos foram muitas vezes levados à presença do sumo sacerdote, no Sinédrio, para serem julgados. Ficaram presos e alguns sofreram o martírio. O Império Romano também rejeitou os cristãos. São conhecidas as dez perseguições romanas que levaram à morte milhares de mártires. Sangue de mártires foi, no entanto, semente de novos cristãos. Depois, no séc. IV, o imperador Constantino permitiu o culto das religiões e o cristianismo teve liberdade para se expandir. Deu-se, porém, o inevitável: a Igreja tornou-se aliada dos senhores do mundo. De muitas formas, através dos séculos, os Papas estiveram ligados ao poder temporal, comprometendo, com esta aliança, o anúncio do Evangelho. Houve inúmeras tentativas para libertar a Igreja do domínio dos príncipes, mas esta tarefa parecia sempre impossível. Bento de Núrsia, no século V, Francisco de Assis e Domingos de Gusmão, no séc. XIII, Vicente de Paulo, João de Deus, Camilo de Lellis, apóstolos da caridade no séc. XVII e, tantos outros foram insuficientes para definir claramente a missão da Igreja no mundo.
Continuou sempre a ouvir-se, porém, a voz de Jesus Cristo no Evangelho:
• “Deus amou tanto o mundo que lhe deu o Seu próprio filho” (Jo 3, 16) – é o princípio da missão redentora que Jesus vem realizar.
• “Eu não vim ao mundo para condenar o mundo, mas para que o mundo seja salvo” (Jo 3, 17) – é a definição clara do objectivo da encarnação do Filho de Deus que se “humilhou a si mesmo, tomando a forma de servo” (Fil 2, 8).
• “Como o Pai me enviou ao mundo, também Eu vos envio. Pai, não te peço que os tires do mundo, mas que os livres da maldade. Eles estão no mundo como Eu estou no mundo. Santifica-os na verdade” (Jo 17, 18) – é a missão dos cristãos no mundo e não longe dele.
• “Ide por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura, baptizai-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28, 19-20) – é o envio dos cristãos numa missão que marca toda a sua vida.
Ao ler o Evangelho, compreende-se que a missão dos cristãos consiste na transformação do mundo. Desenvolver este mandato exige uma Igreja “em saída”, como refere o Papa Francisco na Exortação Pastoral Evangelii Gaudium. Os cristãos de hoje não podem viver nos templos e fechados na “sacristia”. São chamados a ir à cidade dos homens para ali implantarem o Reino de Deus. Missão difícil, mas fundamental para o bem de toda a humanidade.
2. Esta sensibilidade para a evangelização do mundo aparece na acção dos últimos Papas, desde Leão XIII, o Papa da “questão social” nos finais do séc. XIX. É, porém, com o Concílio Vaticano II, com João XXIII e Paulo VI que esta preocupação pela evangelização do mundo se acentua.
• João XXIII, ao justificar a convocação do Concílio, avalia o mundo do pós guerra e a urgência de lhe levar a Boa Nova de Jesus Cristo.
• Paulo VI publicou a última constituição do Vaticano II, a Gaudium et Spes. Neste documento conciliar fica bem definida a missão da Igreja na sua relação com o mundo. Afirma, porém, as áreas em que esta missão se realiza: a família, a cultura, a economia, a política e a paz. A presença da Igreja é nestes campos fermento de renovação profunda ao serviço do homem e da comunidade.
• João Paulo II tem um pontificado que provoca a queda do muro de Berlim. Depois, através das 169 viagens apostólicas, leva a todo o mundo a mensagem do Evangelho, mensagem esta que pode transformar toda a realidade da comunidade humana.
• Francisco, com a Exortação Pastoral sobre a Alegria do Evangelho, olha para o mundo actual, com todos os seus problemas, e desafia os cristãos a não terem medo de sair para a rua, com o fim de mudar as mentalidades e construir um novo mundo.
Estamos perante uma nova imagem da Igreja, ao serviço da nova evangelização. Até agora, ao falar-se da fé, muitos pensavam exclusivamente na sua relação com Deus, na oração e no cumprimento dos mandamentos. Agora, fala-se da relação dos cristãos com o mundo e da maneira destes se revelarem cristãos em todas as situações do quotidiano.
3. Foi o Concílio Vaticano II que afirmou a missão dos leigos na Igreja, ao dizer que lhes pertence “tratar da ordem temporal e orientá-la segundo Deus para que progrida e assim glorifique o Criador e Redentor” (LG 31). Esta missão de evangelizar o mundo, não é tarefa apenas dos bispos e dos padres. Também os leigos têm o dever de transformar o mundo, para que ele se renove totalmente com a prática esclarecida dos valores do Evangelho. Na Exortação Pastoral, o Papa Francisco dá as grandes linhas de mudança, a que chama “desafios do mundo actual”.
• “Não a uma economia de exclusão” que deixa muitos de fora e os atira para a margem do caminho, excluindo-os de qualquer participação na vida da cidade.
• “Não à nova idolatria do dinheiro” que provoca terrível “décalage” entre pobres e ricos, ao ponto de os ricos, com grandes fortunas, serem cada vez mais ricos, enquanto muitos vivem abaixo da dignidade humana.
• “Não a um dinheiro que governa em vez de servir”, com alianças que desprezam as situações concretas das pessoas, destroem as famílias tornando-as incapazes de realizar a sua missão, comprometem o futuro dos jovens que ficam impedidos de se realizar nos sonhos de vida a que têm direito.
• “Não à desigualdade social que gera violência”, uma vez que, condenados ao silêncio, entregues à indignação, os mais pobres não encontram outra forma de reivindicar senão através de uma violência destruidora.
É neste contexto que Francisco fala depois do desafio para uma nova espiritualidade, da vitória sobre os egoísmos e o pessimismo estéril, da abertura a relações novas guiadas por Jesus Cristo, da cordialidade que leva ao perdão e à reconciliação. É um mundo novo que pode ser construído (cf EG).
4. Relendo o capítulo II da Exortação, “Na crise do compromisso comunitário”, é fácil compreender que há objectivos muito concretos na evangelização do mundo actual (do nosso mundo). Referem-se três por serem os mais urgentes.
• Evangelizar a cultura pede um esforço constante para levar à educação, à informação, às artes, a todas as expressões culturais, os valores indispensáveis a uma sociedade justa e fraterna. Os valores cristãos são fermento da verdadeira cidadania.
• Evangelizar o trabalho reclama um esforço constante para garantir a construção social, criando emprego, garantindo salários justos, exigindo competências, provocando a produtividade necessária ao desenvolvimento sustentado.
• Evangelizar a economia e a política convida uma e outra a estarem ao serviço das pessoas e não das preferências dos grupos dominados por ideologias e interesses. É neste campo que a solidariedade encontra depois a complementaridade indispensável.
É claro que, além destes, tem de evangelizar-se a família, a escola, o desporto, todos os espaços onde as pessoas se movem na permanente procura da realização e da felicidade.
5. A Evangelii Gaudium é uma janela aberta para viver, em Igreja, uma experiência nova de ser cristão. Talvez esteja aí a Nova Evangelização de que tanto se fala. A paixão pela Nova Evangelização é uma maravilhosa aventura.
Pe. Vítor Feytor Pinto
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