PURIFICAR O CORAÇÃO – 8 de Março de 2015

1. O profeta Ezequiel fazia um dia uma oração pedindo ao Senhor para lhe purificar o coração e o espírito. Acrescentava “tirai do meu peito o coração de pedra e dai-me um coração capaz de amar” (Ez 36, 26). Neste tempo de Quaresma sugere-se a purificação do coração, libertando-o de todo o egoísmo, “das rixas, das brigas, das contendas, das imolações, dos ciúmes, das discórdias e divisões” (cf Gl 5, 19) como dizia S. Paulo. Encharcando-o, porém, dos frutos do Espírito: “a alegria, o amor, a paz, a bondade, a ternura, a solidariedade e o domínio de si próprio” (Gl 5, 22). Esta é a mudança total da vida. No Evangelho, muitas vezes Jesus insiste na mudança de vida.

• Aos enfermos a quem curava repetia sempre: “A tua fé salvou-te, vai em paz, não tornes a pecar” (Mc 5, 34).

• Aos pecadores, mesmo que desprezados por todos, dizia: “Ninguém te condenou, também eu te não condeno, vai em paz” (Jo 8, 11).

• Aos inquietos, fossem sinedritas, como Nicodemos ou cobradores de impostos, como Zaqueu repetia: “é preciso nascer de novo” (Jo 3, 7) ou então: “desce depressa que vou almoçar em tua casa” (Lc 19,5).

• A um jovem que queria ser melhor chegou a pedir “Vai, vende o que tens, dá-o aos pobres e vem depois” (Mt 19, 21).

• A uma mulher da Samaria, uma estrangeira, prometeu a água viva que jorra para a vida eterna (cf Jo 4).

• Compreendendo a fragilidade de Pedro, também soube dizer-lhe “E tu, uma vez convertido, confirma os teus irmãos” (Lc 22, 31-32).

O Papa Francisco, na Mensagem da Quaresma, pede para que os cristãos fortaleçam o coração. Também Paulo dizia, no meio das suas dificuldades “Tudo posso, n’Aquele que me dá força” (Fil 4, 13). É o coração novo, purificado, que pode transformar tudo à sua volta.

2. A Liturgia deste 3º Domingo da Quaresma permite encontrar Jesus, no Templo, a purificar a casa do Senhor. Os vendilhões e os cambistas tinham transformado a casa de Deus em casa de negócios. Na descrição de Marcos havia três coisas que profanavam o templo: as pombas, outros animais e o dinheiro. Hoje continuam a ser as mesmas coisas que profanam o templo.

• As pombas, que são símbolo de espiritualidade, tinham-se tornado no templo forma de lucro. Também hoje muitas vezes a relação com Deus tem o seu quê de negócio, com promessas que depois se não cumprem, com exigências na oração que quase pretendem forçar os céus.

• Os animais estavam votados ao sacrifício. No templo de Jerusalém tinham-se tornado interesse no jogo de compra e venda. Também hoje a materialidade, com as suas características, reduz profundamente a relação com Deus. As preocupações que dominam até os cristãos são mais a casa, o automóvel, o computador, as roupas de moda e muitas inutilidades. Quase se transforma o templo da vida em centro comercial de facilidades, sem que Deus ali tenha lugar.

• O dinheiro era trocado pelos cambistas. Ia-se ao templo para assegurar vantagens e não para adorar a Deus. Também hoje se vive com a obsessão pela segurança económica. Porque o dinheiro se tornou um absoluto, como diz o Papa Francisco, a economia mata e a pessoa é sacrificada à ânsia de dinheiro e de poder.

• O ambiente é uma outra característica do templo que o Senhor quis purificar. Também hoje os ambientes estão perturbados pelo medo, pela angústia, pelo desemprego, pela pobreza, pelo desconhecimento do futuro. Por isso, as pessoas isolam-se e, nas grandes cidades, ficam sós, sem a capacidade de relação que lhes permitiria sentir-se parte de uma comunidade viva. Como é possível que crianças e idosos sejam abandonados à sua solidão?!

Cada cristão deve ter consciência de que o seu corpo, toda a sua vida, é templo do Espírito Santo que habita nele. Por isso, neste tempo de Quaresma, o desafio está em purificar a vida, do culto da matéria, do dinheiro, dos ambientes negativos, até de uma espiritualidade egocentrista que separa dos outros. O templo que cada cristão é, tem de estar preparado para receber o Senhor e dar o Senhor aos outros.

3. Para contrariar uma cidade que aparentemente vive na abundância mas que se esqueceu de Deus, vale a pena repensar a conversão quaresmal. É uma forma de avaliação crítica, para a renovação profunda que cada um pretende. O Papa Francisco pede uma Igreja em saída indo determinadamente ao encontro dos outros que andam mais longe. A cidade dos homens também é um templo. Este templo pode estar profanado e, por isso, o cristão tem nele um lugar de extraordinária importância. Foi Jesus que o disse: “Pai Santo não Te peço que os tires do mundo, mas que os libertes da maldade. Como Tu me enviaste ao mundo, também eu os envio ao mundo. Santifica-os na verdade.” (Jo 17, 15-20). Respondendo ao apelo de Jesus, o cristão é chamado a dar um sentido novo ao seu prédio, à sua rua, ao seu bairro, ao café que frequenta, ao lugar profissional onde trabalha, ao seu grupo de amigos. Como fazê-lo?

• Dando pão aos que têm fome e água aos que têm sede. É preciso reinventar a parábola da partilha para que os que têm carências essenciais à vida tenham quem se preocupe com eles.

• Indo ao encontro dos que estão na solidão. Há pessoas que bem perto de nós foram “deixadas à beira do caminho”. O próprio Papa Francisco considera ser pecado mortal o abandono dos pais e avós (Homilia de 4 de Março 2015). Mas também há vizinhos e outros conhecidos que estão atolados na solidão. É preciso estar com esses.

• Sendo conforto na infelicidade que surpreendeu alguns. A crise do mundo trouxe inúmeros sofrimentos. Fazer seu o sofrimento dos outros é missão do cristão. Ouvi-los, compreendê-los, ajudar a vencer alguns problemas, reafirmar confiança, apoiar sem julgar, ser palavra ou sorriso, ou simplesmente ternura, tudo isto faz-se presença que é um sinal de amor.

• Acolhendo os mais pequeninos muitas vezes atirados para as instituições. Era o poeta que interpelava o próprio Deus ao dizer “Mas as crianças Senhor/ porque lhes dais tanta dor/ porque padecem assim? (Augusto Gil). Quando se vê uma criança com olhos esbugalhados em frente da montra de uma pastelaria, quando se sabe que outra criança não é capaz de aprender a ler e a escrever, o cristão não pode ser insensível, tem que lhe dar toda a ternura e encontrar-lhe saída para o seu futuro.

• Levando, então, Deus à cidade. A falta de Deus impede o reconhecimento de que todos são família, sendo irmãos com o mesmo Pai. Se se aceita a beleza da presença de Deus, vai ser mais fácil que todos se sintam irmãos, que todos aprendam a perdoar, que todos consigam acolher os mais pobres, que todos saibam sorrir, transformando a relação humana no universo de felicidade. Esta é a missão dos cristãos numa Igreja em saída.

Estas “dicas” são apenas sugestões para que os cristãos recriem a sua conversão neste tempo de Quaresma. Com o coração purificado será mais fácil purificar também a cidade dos homens, fazendo que ela deixe de ser casa de negócio, mas se torne templo onde Deus habita e todos se sintam companheiros na construção da felicidade.

4. A Comunidade Paroquial do Campo Grande é na cidade um agente de transformação social. Se a oração é de relevante importância, a presença operante na relação com os outros será anunciadora de uma Igreja em saída que quer mesmo transformar o mundo.

Pe. Vítor Feytor Pinto

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